#37 a taça de cristal
ou “o ensaio mais citado na história da tipografia ocidental” | tempo de leitura: 7 minutos
oie, esse é mais um história das coisas. na última edição de cada mês eu me dedico a estudar e compartilhar a história por trás de algum artefato de design, da sua criação ao legado. já falei sobre a fonte trajan, os vitrais de Brasília e os ícones digitais. mas hoje, pela primeira vez, não vou falar de uma obra de design, mas uma obra sobre design: o ensaio “A taça de cristal ou a impressão deve ser invisível”, de Beatrice Warde, um dos textos mais clássicos e de influência mais perene na área da tipografia. vamos?
🍷 O valor da taça de cristal
Em 1930, Beatrice Warde fez um discurso na Guilda dos Tipógrafos Britânicos, defendendo que a boa tipografia deve ser invisível. Como gerente de publicidade na Monotype, era comum para ela visitar escolas de impressão, universidades e fábricas tentando conscientizar seus colegas na indústria gráfica da importância de elevar os padrões de impressão, principalmente da tipografia (apesar de que, no início do século XX, as duas coisas eram meio difíceis de separar). Printing should be invisible se tornaria o seu discurso mais famoso; foi publicado diversas vezes desde então e hoje, quase 100 anos depois, é considerado um cânone do design gráfico. Ela começa convidando o ouvinte (ou agora, o leitor) a juntar-se a ela em uma metáfora:
“Imagine que você tem diante de si uma jarra de vinho. Para essa demonstração imaginária, você pode escolher a safra de sua preferência, desde que seja de um vermelho suave e profundo. Diante de você encontram-se duas taças. Uma é de ouro maciço, trabalhado com extrema delicadeza. A outra é de cristal, um vidro absolutamente claro, fino e transparente como uma bolha. Sirva-se e beba; dependendo da taça que você escolher, saberei se você é ou não um conhecedor de vinho. Pois se, por um motivo ou outro, o vinho não lhe diz nada, você desejará bebê-lo em um recipiente que pode ter custado milhares de libras; mas, se você faz parte daquela tribo em extinção, os amantes das safras de vinho de excelente qualídade, escolherá a taça de cristal, porque tudo nela foi calculado para revelar, e não para esconder, aquela coisa bela que ela está destinada a conter.”
Beatrice defendia uma visão modernista da tipografia: a forma do texto não deve nem mesmo ser notada pelo leitor. Se você pode notar a tipografia, então sua atenção não está 100% no que está sendo lido. Um pouco mais à frente no texto, ela faz uma das considerações mais sensíveis sobre a comunicação escrita que já li (considerando, é claro, que eu me importo com palavras):
“Conversar, fazer transmissões radiofônicas, escrever e imprimir são, de maneira bastante literal, formas de transferência de pensamento, e essa capacidade e essa avidez de transferir e receber os conteúdos da mente é que são quase as únicas responsáveis pela civilização humana.”
Em edições passadas (mais especificamente, na #30, sobre tipografia e gênero; na #2, sobre tipografia e ativismo e na #13, sobre maximalismo) eu falei sobre como a mensagem contida na forma pode ser tão importante quanto a do conteúdo, e como o minimalismo muitas vezes se aproxima de uma ideia de normatividade excludente.
Pode parecer contraditório, então, concordar com o texto de Beatrice; mas a principal diferença é que ela não argumenta a favor da simplicidade na tipografia com base na futilidade do ornamento, como outros modernistas. Seu argumento se baseia na humildade necessária, da parte de quem compõe a forma de um texto, para não ofuscá-lo. É uma questão de honrar a mensagem que está sendo transmitida quando isso for necessário.
A boa tipografia, para Beatrice Warde, deve ser como uma taça de cristal: deve revelar o texto, permitir acesso integral à todas as suas qualidades, e não escondê-lo com sua beleza própria. Enquanto eu acredito que o sucesso da aplicação dessa tese depende do contexto da comunicação, não deixa de ser um ensaio brilhante, bem escrito e - com razão - ainda relevante para o estudo do design.
🎩 Beatrice Warde & Paul Beaujon
Beatrice Warde era uma jovem mulher estadunidense de 26 anos. Paul Beaujon era um homem de barba grisalha e longa, com quatro netos, um grande interesse por móveis antigos e um endereço bastante vago em Montparnasse. E eles foram a mesma pessoa. It's a men's world, e Beatrice Warde sabia disso.
Ela começou a se interessar por letras aos treze anos de idade, ainda na escola, onde aprendeu a arte da caligrafia. Na faculdade, se interessou pela tipografia propriamente, mas não chegou à prática da porque “o ofício da impressão é proibido às mulheres, no nível do artesão”, nas palavras dela mesma.
Depois da graduação, ela se tornou bibliotecária assistente na American Type Founders Company, e permaneceu lá de 1921 a 1925. Ela ficou profundamente intrigada por um comentário de seu chefe Henry Lewis Bullen: ele a disse que tinha certeza que alguns dos tipos atribuídos a fonte Garamond, supostamente obra de Claude Garamond no século XVI, eram na verdade o trabalho de outra pessoa (ele “nunca tinha visto o tipo sendo usado em um livro da época”). Beatrice se aprofundou nessa pesquisa e, em 1926, publicou suas descobertas na The Fleuron: vários tipos que se confundiam com os de Garamond, na verdade, haviam sido desenhados noventa anos mais tarde do que se acreditava, por Jean Jannon. Mas acabou publicando tudo isso sobre o pseudônimo de Paul Beaujon.
Logo depois, em 1927, Paul Beaujon foi convidado pela Monotype Corporation para ser o editor da Monotype Recorder. Beatrice acertou a oferta, mas surpreendeu a todos quando apareceu no escritório. A oferta não foi retirada por ela ser uma mulher - embora haja registros de menções a ela por seu pseudônimo mesmo depois da revelação de sua real identidade, o que é no mínimo estranho1. Em 1929, foi promovida a gerente de publicidade da empresa, cargo no qual permaneceu até sua aposentadoria nos anos 1960 - e foi atuando nessa posição que passou a dar suas palestras :)
🖋️ O legado de Beatrice Warde e a metáfora das taças
Beatrice escreveu outros ensaios considerados importantes para a tipografia. Além da sua pesquisa sobre a Garamond, ela também estudou o desenvolvimento das letras romanas e escreveu extensamente sobre a importância do design e da profissão de impressor.
Enquanto sua contribuição intelectual para a área é inegável, houve também uma contribuição social: ao tornar-se relevante no meio tipográfico, ainda que fosse uma posição difícil (ela mesma se considerava uma outsider), ela abriu espaço para outras mulheres. Ela foi co-fundadora da Society of Typographic Arts em Chicago e até “emprestou” seu nome para uma publicação-protesto de mulheres tipógrafas, Bookmaking on the Distaff Side; ela não chegou a enviar uma contribuição para o livro, mas é especulado que sua assinatura trouxe mais atenção para a iniciativa2.
O ensaio Printing should be invisible foi uma grande contribuição para o modernismo e o funcionalismo, ao argumentar que a tipografia deve “servir” ao texto e ao leitor; e sendo Beatrice uma grande comunicadora, o ensaio também é um exemplo de um bom texto sobre design. É claro que hoje, quase um século depois de sua publicação, não dá pra exergá-lo como uma regra, embora suas diretrizes sejam muito interessantes. Mas eu considero que mesmo textos que discordam diametralmente de Beatrice - como o F*ck Content de Michael Rock, que vale a leitura - fazem parte do seu legado; afinal, mostra que suas ideias se cristalizaram de tal forma que se opor a elas exige bastante esforço intelectual.
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obrigada por ler até aqui :) se você ainda não leu A taça de cristal, pode encontrar o original em inglês nesse link. eu li a tradução para o português no livro Textos Clássicos do Design Gráfico, mas sei que também há uma outra tradução publicada no Teoria do Design Gráfico. fique a vontade para responder esse e-mail se quiser conversar, compartilhar algo ou até mesmo criticar algum ponto da newsletter. espero que esse possa sempre ser um espaço de troca.
até a próxima terça!
- hele
Essa informação consta no ensaio O livro como festa americana: Edna Beilenson, Jane Grabhorn & as publicações da Distaff Side, de Kathleen Walkup, publicado na coletânea Inimigas Naturais dos Livros [grátis no kindle unlimited]
Idem.
Adorei conhecer Beatrice! <3