#30 𝓂𝓊𝓁𝒽𝑒𝓇, não: mulher
ou: parem de generizar coisas que não tem gênero, eu imploro | Tempo de leitura: 6 minutos
estava eu plena numa tarde procurando alguns textos sobre tipografia e legibilidade pra uma edição da newsletter. eu leio muita coisa questionável durante as pesquisas, afinal, é a internet. sinto que parte do meu trabalho é filtrar essas coisas e só trazer pra makers reflexões bem fundamentadas. mesmo assim, fiquei meio chocada quando li um trecho bem machista sobre tipografia em um blog de design famoso. não era um trecho machista malvadão; era um trecho machista tipo “eu ignoro como as questões de gênero se relacionam com o design porque eu sou um homem designer e posso escolher não questionar normas e estereótipos de gênero historicamente construídos”. e acabei mudando o rumo da edição de hoje pra falar sobre tipografia & gênero. vamos?
💌 essa edição virou uma zine/poster!
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💅 𝓂𝓊𝓁𝒽𝑒𝓇, não: mulher
E então, qual fonte você escolheria pra um poster para mulheres? Uma fonte forte ou uma fonte fraca? Esse post é de 2017, e seria fácil argumentar que o autor provavelmente já não pensa mais assim, afinal a sociedade está melhorando ou sei lá. Talvez hoje em dia esse mesmo designer não relacione diretamente “forte e robusto” com um público masculino e nem “suave e delicado” com um público feminino. Não vamos focar nele como indivíduo.
Meu ponto é que eu estava pesquisando por “tipografia e legibilidade” no Google, e esse post apareceu na primeira página. Ele ainda é considerado relevante na internet hoje. Se eu quisesse, eu poderia mostrar muitos exemplos em 2023 de campanhas de Dia da Mulher que usam estereótipos de gênero no design. Mas primeiro eu quero fazer outro caminho: olhar para o passado.
Afinal, de onde vem a ideia de que fontes cursivas e com ornamentos são femininas e que fontes sem decorações e mais pesadas são masculinas?
Theodore L. De Vinne é considerado o impressor comercial mais importante da sua época, foi professor e uma figura importante para a tipografia estadunidense. Eu não sei se ele foi o primeiro, mas já em 1892 ele publicou um artigo intitulado “Masculine Printing”, que diz o seguinte:
“Eu chamo um trabalho de impressão de “masculino” quando ele é notável por sua legibilidade, força e ausência de ornamentos inúteis. Eu chamo de “feminino” qualquer trabalho de impressão que é notável por sua delicadeza, e pela fraqueza que sempre acompanha a delicadeza, bem como a grande quantidade de ornamentos”1
Ele poderia chamar impressões delicadas de delicadas, se é o que elas são, mas ele quis chamar de femininas, porque acreditava de verdade na superioridade dos homens sobre as mulheres. Isso é misoginia, e esse discurso não ficou nos anos 1800. É só visitar a tag “feminine” do CreativeMarket pra constatar (ou de qualquer outro site que distribua fontes).
🚷 mas afinal, qual é o problema?
“Ei, hele, mas eu acho que essa fonte é feminina sim, e eu não quero dizer isso de um jeito ruim, ela simplesmente é feminina.” Ok, se você insiste, pense em uma tipografia considerada “neutra” - não é a mesma que você imagina quando pensa em uma “feminina”. As tipografias consideradas “masculinas", por Theodore L. De Vinne e uma infinidade de designers depois dele são, hoje, as tipografias “neutras”, sem ornamentos, sem uma “voz própria”. Como em tantos outros contextos, o masculino é a norma, e para o feminino resta o lugar do “outro”. Eu gosto muito da reflexão da Jen Wang sobre isso. Na edição #2 tipografia e ativismo, eu traduzi um ensaio que traz essa citação dela:
“A alteridade ainda é projetada por meios tipográficos. As capas de livros de romances literários com protagonistas femininas tendem a ser swash ou serifadas; romances que se passam em países estrangeiros empregam floreios, macramê ou outros clichês e estereótipos culturais — tropos para o consumo branco. Pessoas do sexo feminino e racializadas são retratadas geralmente como uma generalização sem rosto de gênero e raça. Isso não apenas reforça a dinâmica de poder de quem é visto e de quem está vendo, mas também reforça o outro como estático, imutável, fixo.”
Como resolver essa questão? Minha melhor sugestão é que usemos adjetivos reais, que querem dizer alguma coisa. Uma fonte pode ser ornamentada e delicada - isso não faz dela feminina. Por que os adjetivos ornamentada e delicada não são suficientes?
Fontes não tem gênero, assim como cores não tem gênero e formas não têm gênero. Existem estereótipos, sim. Na verdade, existe todo um sistema retroalimentado: é óbvio que hoje em dia a maioria das peças gráficas destinada ao público feminino é rosa ou roxo e usa fontes cursivas e fluidas, então como podemos esperar que pessoas que veem essa associação por toda parte não sejam influenciadas por ela? Se eu fizer uma pesquisa com pessoas aleatórias que eu conheço e perguntar o que elas acham da fonte que mostrei acima, Beatrice, elas podem usar a feminilidade como uma característica. Mas elas poderiam simplesmente dizer delicada, fluida, script, arredondada, suave - esses são adjetivos que realmente descrevem a fonte. Não precisamos de mais adjetivos, e não precisamos associar ainda mais fragilidade e frivolidade com feminilidade. Principalmente, não precisamos opor força e utilidade a feminilidade. Mais do que isso: não devemos.
E não é que nada é feminino. A questão é a associação de masculino com bom e de feminino com ruim, ou ruim disfarçado: “delicado” (outros diriam frágil), “ornamentado” (preciso lembrar vocês do Adolf Loos?), etc. Eu decidi escrever sobre esse tema com relação à tipografia, mas sabemos que o mesmo acontece com cores, formas geométricas e outros elementos gráficos. Em todas essas situações, os estereótipos de gênero podem e devem ser questionados.
🔮 e para o futuro…
Quero fechar essa edição com mais uma citação, de Victoria Rushton:
“Quer percebamos ou não, as palavras que usamos nos moldam, e precisamos desesperadamente continuar a remodelar a forma como a sociedade considera a feminilidade. E não podemos chegar lá sem parar para reavaliar algumas das coisas que dizemos casualmente.
Não sei você, mas me interesso por design de tipos porque sei que as palavras são importantes. Vamos moldar o que acontece a seguir, escolhendo-as cuidadosamente.”
Se você se interessa por esse tema, separei alguns artigos que me ajudaram a encontrar o que eu queria dizer nessa edição.
Entre os extremos, de Aasawari Suhas Kulkarni
How lettering became gendered and why it is wrong, de Kris Sowersby
Type and Gender Stereotypes, de Victoria Rushton
O livro Inimigas Naturais dos Livros, do coletivo sueco MMS
obrigada por ler até aqui :) essa edição faz parte de um newsletteraço para o 8 de março, organizado pelo grupo Newsletter BR (do qual eu adoro fazer parte). a ideia era escrever uma edição que se relacionasse com as questões de gênero de alguma forma, e eu nem ia participar, mas fiquei um pouco abalada lendo aquele post de blog hahah. e você, o que acha? fique a vontade para responder esse e-mail se quiser conversar, compartilhar algo ou até mesmo criticar algum ponto da newsletter. espero que esse possa sempre ser um espaço de troca.
até a próxima terça!
- hele
📨 Perdeu a última edição?
Tradução livre. O trecho original é “I call printing ‘masculine’ that is noticeable for its readability, for its strength and absence of useless ornament. I call ‘feminine’ all printing that is noticeable for its delicacy, and for the weakness that always accompanies delicacy, as well as for its profusion of ornamentation.”
esse assunto me lembrou relativismo linguístico, ainda mais depois da última citação.
texto necessário! espero que ele indexe bem nas ferramentas de busca 😉
Até as coitadas das fontes passam pela genderizacao, né? Quanto trabalho temos pela frente... Adorei o texto, 💞