#2 tipografia e ativismo
Tempo de leitura: 5 minutos | as letras que escolhemos são quase tão importantes quanto as palavras.
a tipografia deve ser o assunto mais abordado no design gráfico depois das cores. aprendemos rápido que letras serifadas evocam seriedade e tradição, letras geométricas transmitem modernidade e as tipo display devem ser usadas com cautela. mas se podemos inferir valores como esses a uma tipografia, até onde isso pode ir? se uma tipografia pode ser considerada tradicional, será que outra pode ser considerada revolucionária?
❤️ para se inspirar
A “Inimiga do rei” e outras tipografias para o ativismo
Conheci o trabalho do Eduardo Cazon na conferência on-line Typewknd, em 2021. Ele é o designer responsável pela Inimiga do rei - uma fonte projetada para expressar mensagens contra a opressão. O próprio autor escreve no Specimen1 da fonte:
Feita para comunicar visualmente ideias de enfrentamento à injustiças em livros contrários a opressões ou em panfletos distribuídos em um protesto.
Devido à sua aparência caligráfica e suas formas abruptas e dinâmicas, a Inimiga do rei apresenta uma nova interpretação das altamente legíveis fontes serifadas humanistas. Ela não tem medo de de ser vigorosa e grave, cheia de movimentos e tensões, ela é agressiva e combativa, mas sem perder a ternura das fontes humanistas.
A Inimiga do rei possui modulação moderada, tendo construção caligráfica de ponta chata interrompida, mas sem parecer antiga. Sua cor é escura e suas contraformas possuem quinas, devido aos seus ombros abruptos. As aberturas são amplas e os terminais são retas inclinadas, principalmente nas ascendentes e descendentes, que possuem uma altura generosa. Ela possui boa legibilidade e é confortável, mesmo tendo uma largura esguia e ritmo acelerado.
Uma vez que podemos extrair algum significado da dimensão não verbal das palavras - a escolha tipográfica -, Eduardo Cazon embarcou em uma análise histórica da tipografia que sustenta o status quo e encontrou outros projetos contemporâneos de fontes de textos projetadas para o ativismo, com o objetivo de compor uma fonte que pudesse reforçar os ideais revolucionários e antiopressão dos textos em que for empregada. A Inimiga do rei foi projetada em um software open-source, o FontForge, e está disponível para download gratuito no Fontesk. Ele descreve o processo de pesquisa e elaboração em seu Projeto de Conclusão de Curso (PCC) para a graduação em Design na UFSC. O documento completo pode ser acessado aqui. E como essa é uma seção de inspiração na makers gonna make, vou aproveitar para mostrar também outras tipografias citadas por Eduardo em seu trabalho.
💭 para refletir
Nari Variable, uma fonte para lutar contra o Tipatriarcado
Então, o que significa para uma tipografia 'ser feminista'?
Aasawari Suhas Kulkarni, designer de tipos nascida na Índia, tenta responder a pergunta em seu ensaio Entre os extremos, originalmente publicado no blog Femme Type e que eu traduzi para o português aqui.
“Neutro é normal, principal, porque é associado a sensibilidades mais masculinas e usado para transmitir mensagens políticas, usado como voz para corporações gigantes, usado para encontrar caminhos e rotular. "Neutro" se senta quietinho e dá o palco ao conteúdo da mensagem sem muito falar por conta própria. Como quando um homem branco (ou um homem brâmane de pele clara no Oriente) se levanta e diz algo ao mundo, o mundo acredita que é verdade sem fazer perguntas — o que deixa qualquer coisa que não seja neutra para ser associada com “o outro”. Se uma mulher de cor (ou uma mulher de casta baixa no Oriente) se levantar e disser a mesma coisa, isso não será necessariamente afirmado tão facilmente. O tipatriarcado (assim como o patriarcado no mundo físico) anulou nossas sensibilidades para perceber tipos neutros como limpos e seguros quando claramente tudo o que eles fazem é afirmar a normalidade e, o mais importante, se afastar da Expressão.”
Aasawari desenvolveu a tipografia variável Nari para lutar contra o que ela chama de typatriarchy, o tipatriarcado. No ensaio, ela conta como surgiu seu interesse pelo design de tipos e como também os questionamentos em relação às tipografias consideradas “neutras” pelas normas do design gráfico. Fontes sem serifa, supostamente sem uma personalidade a acrescentar, como a super-glorificada Helvetica - que atuam justamente se mantendo quietas e cedendo sempre a palavra aos homens brancos. Para Aasawari, enquanto as tipografias desenvolvidas para o ativismo continuarem a ser usadas somente para o ativismo, não derrotaremos o tipatriarcado e a desigualdade social no design. Mais do que produzir tipos de protesto, precisamos empregá-los e lutar contra a dominância da neutralidade.
obrigada por estar comigo para mais uma edição :) já estava pensando em compartilhar ‘a inimiga do rei’ quando li ‘entre os extremos’ e fiquei muito animada de trazer as duas referências juntas. assim como em relação à desigualdade social na ‘vida real’, dentro do design precisamos assumir nossa responsabilidade como “fazedores”, agentes da criatividade e da transformação. espero que essa edição possa te inspirar a tentar algo novo com a tipografia! além disso, fique a vontade para responder esse e-mail se quiser conversar, compartilhar algo ou até mesmo criticar algum ponto da newsletter. espero que esse possa sempre ser um espaço de troca.
até a próxima terça!
- hele
📨 Perdeu a última edição?
👩🏻💻 curadoria e textos por hele carmona, jornalista & estudante de design
💡 tem algo incrível que você gostaria de compartilhar comigo e com mais leitores da makers gonna make? pode me mandar por aqui!
uma amostra da fonte, normalmente uma composição de textos para evidenciar as características da família tipográfica.