#80 multi-hyphen life: liberdade ou precarização?
uma reflexão sobre criatividade e trabalho a partir de "The Multi-Hyphen Life", de Emma Gannon | tempo de leitura: 10 minutos
oie! seja bem-vinde a mais uma edição da makers :) eu sou hele carmona, jornalista-designer-escritora de emails-encadernadora. ufa! são muitos hífens, né? e eu não sou a única. somos pessoas múltiplas, com interesses e habilidades diversos, e é comum que profissionais criativos se aventurem em mais de um ramo (seja por interesse pessoal ou por precarização, acúmulo de funções e etc). na edição de hoje quero falar sobre criatividade e trabalho: num mundo cada vez mais fragmentado, é possível aproveitar nosso multipotencial criativo sem cair (tanto) nas armadilhas neoliberais da vida de freelancer?
🗂️ O que é uma “vida multi-hífen”?
“The Multi-Hyphen Life”, de Emma Gannon, é um livro sobre o futuro do trabalho criativo. A autora é escritora-apresentadora-podcaster-palestrante (daí o nome multi-hífen), além de já ter trabalhado com publicidade. Não é um caso de profissional descobrindo o que gosta de fazer, mas sim de uma pessoa com múltiplos interesses e, por escolha, múltiplos trabalhos. No livro, ela conta detalhes sobre o estilo de vida “multi-hífen” que adotou nos últimos anos, apresentando estatísticas gerais sobre o mercado de trabalho que reforçam sua tese principal: o mundo do trabalho está mudando, e profissionais com múltiplas habilidades vão levar a melhor. Eles terão mais segurança (por serem adaptáveis), mais flexibilidade (por adotarem o modelo freelancer de trabalho) e mais dinheiro (por contarem com diferentes fontes de renda).
Seu discurso é atraente. É verdade que muitas pessoas têm interesses e habilidades diversos mas, por pressão social, são encorajadas a escolher uma faceta específica para desenvolver como um ofício, deixando as outras de lado. Eu mesma me senti bastante perdida entre o jornalismo e o design até perceber que não precisava escolher entre um e outro; hoje sinto que consigo equilibrar bem as duas funções, mas também sei que há pessoas que vão me considerar pouco especialista em design ou pouco especialista em escrita já que eu ouso fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo. Também é raro encontrar oportunidades de trabalho que não consumam toda a nossa energia mental, deixando espaço para encaixar qualquer outra coisa. Faz sentido que pessoas com interesse em mais de uma carreira se sintam podadas, esperando por uma mudança que as permita explorar melhor o seu potencial criativo. E parece que esse momento está se aproximando.
De acordo com uma matéria da revista Forbes, polywork é a tendência crescente de gerenciar vários empregos ao mesmo tempo em vez de depender de uma única fonte de renda. Parece interessante poder explorar outras carreiras, ou ser remunerada para desenvolver mais de um interesse criativo: escrever, projetar, encadernar… Imagina na segunda-feira criar uma régua de e-mails para publicidade e, na terça, passar o dia fazendo colagens. Embora alguns ramos sejam mais comercialmente atrativos do que outros, a criatividade é holística: o todo é maior do que a soma de suas partes. Exercitar a criatividade em qualquer atividade que seja sempre vai nos fazer bem, vai descansar a mente, nos tornar mais inspirados e criativos para a próxima tarefa. Esse é o maior trunfo do estilo de vida multi-hífen.
Em Useful Work versus Useless Toil (1884), William Morris defende a variedade no trabalho como essencial para o bem estar do trabalhador (criativo ou não):
“Obrigar um homem a realizar dia após dia a mesma tarefa, sem qualquer esperança de mudança ou escape, significa nada menos do que transformar sua vida em um tormento prisional. Nada além da tirania do lucro incessante torna isso necessário. (…) Atualmente, toda a educação é voltada para encaixar as pessoas na hierarquia do comércio – uns como patrões, outros como trabalhadores. (…) A verdadeira educação é algo completamente diferente disso: preocupa-se em descobrir para que cada pessoa tem aptidão e ajudá-la a trilhar o caminho que deseja seguir. Em uma sociedade devidamente organizada, portanto, os jovens seriam ensinados nos ofícios para os quais tivessem inclinação, como parte de sua formação, como uma disciplina para suas mentes e corpos; e os adultos também teriam oportunidades de aprendizado nas mesmas escolas, pois o principal objetivo da educação seria o desenvolvimento das capacidades individuais, em vez da atual subordinação de todas as habilidades ao grande propósito de “ganhar dinheiro” – para si ou para o próprio patrão. A quantidade de talento, e até de genialidade, que o sistema atual sufoca, e que poderia ser revelada por um sistema mais adequado, tornaria o trabalho diário mais leve e interessante.”
Acontece que, apesar de estar certa sobre o prazer que vem da criatividade, Emma é uma escritora britânica, branca e rica. Para William Morris, a varidade no trabalho é parte de uma vida alternativa ao capitalismo. Para Emma Gannon, ela seria uma consequência natural e desejável da evolução do mercado, como se a lógica capitalista não afetasse em nada a obtenção do prazer pelo trabalho. Ao longo do livro, ao exaltar os benefícios de uma vida multi-hífen, ela parece ignorar que muitas pessoas têm side hustles, trabalham como freelancers ou acumulam vagas home office por necessidade e não por afinidade. Ter mais de um emprego não é algo tão novo: num cenário de instabilidade financeira, 3 em cada 10 brasileiros procuram renda extra, ou “multiple income streams”, como Emma gostaria de chamar. Trabalhos manuais estão no topo da lista, mas sem o verniz de glamour que ela pinta. Não se trata de atender a um chamado multipotencial, mas de garantir o mínimo de estabilidade financeira quando o mercado é tão precarizado que um emprego apenas não é o suficiente.
Então é importante ter em mente para quem Emma Gannon escreve: profissionais que têm algum poder de escolha, que podem negociar horários flexíveis em seus empregos principais e que têm a possibilidade de testar alternativas diferentes para sua vida profissional. Pensando dessa forma, é um livro interessante, com boas sugestões sobre como diversificar suas fontes de renda assumindo poucos riscos ou como se posicionar no mercado como um profissional multi-habilidoso.

👩💻 Mais uma vez, a era da marca pessoal
Vamos supor que você é uma das pessoas que quer investir em uma carreira multi-hífen, não por necessidade, mas porque acredita que vai ser mais feliz assim. Num cenário otimista, isso não precisa significar acumular microtrabalhos até a exaustão. Um ponto interessante que Emma traz é que múltiplas habilidades podem ser direcionadas para oportunidades estratégicas. Em vez de dezenas de colaborações pontuais, negociar parcerias de longo prazo pode ser uma alternativa mais sustentável.
A questão é: como? Como “se vender” enquanto profissional criativo multi-facetado? Se ser conhecido pelo que você faz ficar confuso, você precisa ser conhecido por quem você é. É preciso desenvolver a temida marca pessoal. No capítulo 4, Our New Work Self, Emma reforça a importância de construir o próprio nome na internet, utilizando de forma intencional e estratégica as redes sociais e outras ferramentas como newsletters (hellooo). Eu concordo até certo ponto — a reputação sempre importou para profissionais autônomos — mas confiar em plataformas proprietárias para garantir seu sustento é arriscado. Redes sociais não são gratuitas e nem livres como a autora as descreve; toda a facilidade e visibilidade que oferecem é cobrado em tempo, atenção e, muitas vezes, dinheiro (os algoritmos não entregam nada sem impulsionamento). Criar algum backup, seja ele um site próprio ou uma lista e e-mails, é essencial para manter a autonomia digital.
Emma também traz atenção para a importância de comparecer a eventos presenciais, conhecer pessoas offline e criar conexões mais significativas do que likes e curtidas. É uma das passagens mais lúcidas do livro, talvez a única em que a autora reconhece o fato de que nós humanos vivemos em comunidade. Ser conhecido também passa por estar aberto a conhecer os outros.
📖 Então eu odiei o livro?
Sim e não. Eu gosto da ideia principal. Gosto de ver a multiplicidade como potencial, como possibilidade. Gosto que existe alguém com uma visibilidade tão grande trazendo atenção pra questão da identidade criativa. Mas o otimismo de Emma Gannon é desmobilizador. Parece paradoxal que ela fale de uma mudança em larga escala, que deve afetar o mercado global, e ao mesmo tempo sugira um caminho tão individualista. “Escolha um vida multi-hífen”, “evite o seu burnout”, “empodere-se através do conhecimento”, ela diz. Nada sobre criar em comunidade, sobre olhar para essas transformações de forma crítica e tentar defender os direitos que nos restam, cada vez mais escassos; nada sobre como buscar novas garantias adequadas a novos tempos.
No capítulo 10, Our Realationship with Money, quando Gannon escreve que “a maioria dos milionários tem sete fontes de renda”, fica claro o quão simplista sua lógica pode ser. A ideia de que basta acumular trabalhos para alcançar estabilidade financeira ignora completamente qualquer desigualdade estrutural. Além disso, ao falar sobre tecnologia no capítulo 5, Burnout Culture, ela trata o vício e o tempo gasto “sem motivo” em redes sociais como outro fracasso individual mesmo admitindo que as plataformas têm culpa na questão. Mas ela não propõem nenhuma responsabilização de empresas, instituições ou governos; apenas a do indivíduo.
O trabalho está mudando e sim, podemos encontrar caminhos mais interessantes dentro dessas mudanças. Mas achar que a resposta está no “empoderamento individual” e na multiplicação de jornadas ignora que, sem articulação coletiva e garantias trabalhistas, seremos cada vez mais miseráveis. Uma mudança no mundo do trabalho como a que Emma Gannon descreve não acontece apenas no nível pessoal — ela acontece quando as estruturas também mudam.
Por fim, admito que “The Multi-Hyphen Life” contém sugestões práticas e úteis para profissionais múltiplos, que buscam relações de trabalho alternativas. A leitura me levou a reflexões pessoais importantes sobre a minha trajetória até aqui — por exemplo, percebi que meu posto como Diretora de Arte na Me.Mo é meu cargo mais duradouro até hoje, e não é sem motivo: a empresa respeita que eu tenha projetos paralelos, sem ciúmes corporativo, e me incentiva a explorar outras formas de criatividade sem medo que meu rendimento caia ou algo do tipo. Antes, cheguei a trabalhar em um lugar em que eu ganhava 1.200 reais (e ainda era PJ, kkkk) e a minha chefe ficou brava quando descobriu que eu tinha freelas pra completar meu salário, como se eu estivesse sendo gananciosa. Realmente, empresas com essa mentalidade são cada vez menos competitivas. Além disso, é legal ver tantos exemplos de outras pessoas bem sucedidas com aspirações parecidas. Já ouvi de designers mais velhos que é super importante escolher um nicho e se especializar, que “um faz tudo não é um mestre em nada”, etc. Então eu prefiro o caminho mais humilde, em que aceito não ser meste em nada mesmo, mas me mantenho fiel ao meu desejo e ao prazer de criar. Se em algum momento isso não for viável profissionalmente, espero ainda poder explorar minha multiplicidade através dos meus projetos pessoais e minha prática não-comercial :)
Ei, você é do Rio ou vai estar por lá nos dias 15 e 16 de março?
Vai rolar mais uma edição da Delícia Impressa e eu vou estar lá como expositora! Vou levar zines, pôsters e - atenção - os últimos exemplares de Glifo por glifo, que estavam reservados pra esse tipo de evento :) Aparece por lá mesmo que seja só pra tocar uma ideia <3
obrigada por ler até aqui! essa é a primeira vez que eu publico uma resenha de um livro, e foi logo um que me deixou cheia de mixed feelings hahah. o que você achou? fique a vontade para responder esse e-mail — eu espero que esse seja sempre um espaço de troca. e se você acha que alguém que você conhece gostaria dessa edição, compartilhe :)
que sabor começar o dia com uma resenha tão boa!
e acho que além das críticas muito bem pontuadas por você, adiciono que a procura por um profissional multi-hífen atualmente tá mais pra uma estratégia suja das empresas de ter uma mão de obra barata que faz tudo, do que um real interesse por amplos conhecimentos (uma busca rápida por vagas criativas no LinkedIn mostra isso). então, pela resenha, fiquei com a impressão que o livro é mais um sonho utópico do que uma possibilidade para a maioria.
Amei, Hele! Não li o livro, mas pelos pontos que você destacou acredito que teria uma visão muito, muito parecida.