#51 canetas bic e posts virais
você já gastou uma caneta bic até o final? | tempo de leitura: 7 minutos
oie, depois de uma semana off a makers tá de volta :) essa edição é uma mistura de história das coisas com o meu desapreço especial pelo tipo de desinformação que “não faz mal pra ninguém”. já me conformei que a internet está cheia desse tipo de coisa, uma frase de efeito aqui e outra ali baseadas em algum tipo de super-simplificação que nos leva a uma conclusão falaciosa. muitas vezes é a omissão de partes importantes de uma história que cria um “viral”, e é por isso que na edição de hoje eu parti de um tipo de postagem muito popular sobre canetas bic pra pensar sobre design e invenções de forma um pouquinho mais realista. vamos?
✍️ O básico bem feito ou whatever
“Às vezes é só fazer o básico bem feito”, dizem dezenas de peças gráficas postadas no LinkedIn, no Facebook e até no TikTok. A frase impactante é apoiada por 3 imagens idênticas de canetas Bic Cristal, cada uma associada a um ano (eles variam, mas em geral, são as décadas de 1950, 1990 e 2020). Nossa, não se fazem mais projetos de designs tão bons assim, né?
“Fazer o básico bem feito” funciona; mas do ponto de vista do design é importante saber que o básico não se materializa do nada, o “básico” não é uma ideia brilhante. Embora tenha provavelmente o intuito de exaltar o bom design, a narrativa do “básico bem feito” ignora anos de aperfeiçoamento de um mecanismo, muitos testes (e o tempo e o dinheiro investido nesses testes), pessoas que fizeram parte dessa genealogia do produto, além de esforços publicitários e do contexto econômico e histórico, que permitiu a produção e o consumo em massa.
O modelo é sim um sucesso. Lançado pela Bic em dezembro de 1950, ele segue em produção até hoje e em 2006 registrou a marca de 100 bilhões de unidades vendidas (vamos falar sobre o quanto de plástico isso representa mais pra frente, esse parágrafo devia ser pra falar bem da caneta). Isso foi há quase vinte anos e eu não tenho as habilidades estatísticas necessárias pra imaginar quantas devem ter sido vendidas de lá pra cá, mas não importa, são muitas. E o reconhecimento não é apenas comercial: a Bic Cristal é parte do acervo permanente do MoMA por conta do seu design tão simples e ainda sim tão eficiente.
🖊️ O que está por trás de um design tão genial?
Se o produto final é o epítome do “básico bem feito”, pode ter certeza que o processo de projetá-lo não foi nada básico. A aparência minimalista e o baixo custo da clássica caneta bic não serviriam de nada se ela não escrevesse, e ela escreve de um jeito específico: é uma caneta esferográfica. Antes dela existiam lápis e canetas tinteiro, mas essas tecnologias não viraram posts no LinkedIn (apesar de que eu acho lápis uma invenção bem boa também).
De acordo com uma matéria da BBC, a primeira patente para uma caneta esferográfica é de 1888, registrada por John J. Loud. Ele inventou uma caneta que liberava a tinta de um reservatório através de uma pequena esfera de metal na ponta porque queria escrever em superfícies duras como madeira e couro. Essa caneta, portanto, não escrevia em papel, mas o novo esquema - ballpoint, em inglês - para a tinta seria aproveitado por outro inventor na década de 1930.
László Biró era jornalista e estava constantemente frustrado com as canetas tinteiro que usava: a tinta demorava a secar e fazia muita bagunça. Ele queria usar o sistema ballpoint, mas a tinta normal das canetas era muito líquida pra isso. Então ele pediu a seu irmão György (que era dentista e um bom químico) que o ajudasse a desenvolver uma tinta com textura adequada e que secasse rápido. E eles conseguiram. László patenteou o modelo em 1938 na Europa, e durante a Segunda Guerra precisou fugir para a Argentina, onde lançou a caneta “birome” em 1943.
O modelo de László seria copiado alguns anos depois pelo empresário americano Milton Reynolds, que passou a comercializar canetas esferográficas nos Estados Unidos. Elas eram caras - 12,50 dólares na época, equivalente a mais de 200 dólares hoje - mas venderam muito bem. Só não venderam mais porque elas eram recarregáveis: sua aparência ainda lembrava a caneta tinteiro e só era necessário comprar uma caneta, e depois os refis de tinta (que duravam até dois anos escrevendo). Então as pessoas recompravam refis, mas não recompravam canetas.
E é aqui que Marcel Bich entra na história.
🚮 Life in plastic
O golpe de mestre que mudaria para sempre a caneta esferográfica não veio dos Estados Unidos, mas da França. Marcel Bich era um industrial francês que dirigia uma empresa que fabricava canetas esferográficas. “Ninguém entendeu melhor do que Marcel Bich aquela potente alquimia do século 20 de alto volume/baixo custo”, escreveu seu obituário no jornal britânico Independent quando ele morreu em 1994. “A esta fórmula ele adicionou o catalisador mágico da descartabilidade. Ele não inventou nada, mas entendeu o mercado de massa quase perfeitamente.”
Se Marcel Bich tivesse tido a ideia de criar uma caneta esferográfica em 1887, antes de John J. Loud, ele jamais teria colocado a Bic cristal no mercado. O fato da caneta mais popular do mundo ter sido lançada após a Segunda Guerra Mundial tem tudo a ver com o seu sucesso comercial porque ditou como ela seria produzida: em massa, feita de plástico. Bich licenciou os direitos pra usar a patente de László da caneta esferográfica em um momento muito favorável. Em “Uma introdução à história do Design”, Rafael Cardoso escreve:
Os trinta anos após o final da Segunda Guerra marcam o apogeu do modelo fordista de acúmulo de capital pela expansão continua do consumismo, o qual gerou consequências de suma importância com relação ao papel do design na produção industrial. Em um sistema em que a prosperidade depende de um consumo sempre crescente, a ideia de produtos descartáveis passa não somente a fazer sentido, mas também se torna uma necessidade. Quanto mais se joga fora, mais oportunidade se gera para produzir de novo o mesmo artigo, o que ajuda a manter uma taxa positiva de crescimento.
A caneta Bic Cristal era (e ainda é) tão barata que se tornou aceitável e até mais “vantajoso” jogar o corpinho transparente fora e comprar uma nova toda vez que a tinta acaba. Não tem mais peso algum esquecer, perder ou quebrar uma caneta, ninguém deixa canetas Bic de herança pros filhos. É descartável e portanto comprada e recomprada o tempo todo. E é claro que canetas não são as maiores poluidoras do planeta - não é esse o ponto, apesar de que tem umas centenas de bilhões de tubinhos por aí - mas a mudança comportamental das pessoas em relação às suas coisas em geral, que favorece o descarte, foi importante nessa equação.
Eu escrevi sobre reparos e o descarte de objetos pessoais na edição #48 da makers gonna make: Nossos hábitos têm conserto?
Produto bom se vende sozinho (alegadamente)
Mas não é a caneta bic que prova essa tese, porque o Marcel Bich investiu bastante (e muito bem, por sinal) em publicidade para o produto. Ele contratou o artista visual Raymond Savignac em 1952, e a Bic ganhou o “Oscar da Publicidade”1 francês com a campanha Elle court, elle court (“Ela corre, ela corre”, em português). Encontrei várias imagens de propagandas antigas no First Versions, e são todas lindas. Teve até uma caravana com um carro em formato de caneta em 1953.
Depois de tudo isso, eu não diria que a caneta bic é “o básico”. Pode ser uma caneta básica, ok - mas essa caneta só foi possibilitada por uns 60 anos de evolução técnica, pelo menos 3 inventores e um contexto social específico que designer nenhum controla individualmente. Design é complexo - e tudo bem ser :)
obrigada por ter lido até aqui! esse tema estava na gaveta há alguns meses e adorei escrever sobre ele. e não, eu não uso canetas bic, eu uso uma da Pentel com tinta gel. e você, qual sua caneta de estimação? fique a vontade para responder esse e-mail - espero que esse possa sempre ser um espaço de troca. e se você gostou da edição, compartilhe com alguém que vai aproveitar essa leitura também :)
A informação consta em uma página antiga do site da Bic, que acessei usando a Wayback Machine do Archive.org.
adorei a edição e a estética dessas "artes" retrô da BIC :)
Eu amo canetas é um dos meus vícios e gostaria que a gente tivesse mais carinho por elas como no século passado. Eu sou do time da Stabilo e todas da categoria fine pen. Infelizmente a caneta esferográgica não me ganha, rs. Mas com certeza é um grande marco do design.