tem uma coisa que eu não gosto muito de fazer, mas sempre faço mesmo assim: costurar minhas roupas sempre que começam a se desgastar. pode ser um rasgo expressivo (outro dia meu vestido enganchou num prego) ou um pontinho que começou a soltar. eu costumava usar linha da mesma cor da roupa e costurar com ponto invisível - obrigada, mãe, por me ensinar a fazer esse. mas há uns meses mudei de ideia e comecei a usar sempre linha colorida e fazer ponto chuleado (esse é um igual o de sutura médica), um ponto visível – pra me lembrar que aquela é uma peça que foi consertada. por quê?
no início de agosto a makers gonna make completa um ano e pensei em fazer uma edição especial respondendo perguntas dos inscritos. pra deixar a sua pergunta é só preencher esse forms - pode ser anônimo!
🚮 O hábito do descarte
Quando vale a pena consertar um objeto ao invés de substituí-lo? Para responder a essa pergunta precisamos definir o que é valer a pena. Pra maioria das pessoas, “valer a pena” é sinônimo de economia financeira; e algumas vezes consertar uma peça de roupa ou um eletrônico é mais custoso do que adquirir um novo. Ou nós nos convencemos de que é: “nossa, mil reais pra trocar a tela? melhor comprar logo um celular novo” e o celular novo em questão é 3 mil reais mas tudo bem porque ele é novo, né? É uma economia mais percebida do que material.
O conceito de obsolescência programada – a ideia de que as empresas projetam e produzem mercadorias com “data” pra se tornarem obsoletos, forçando o consumidor a uma nova compra – já é difundido o suficiente pra que a gente simplesmente assuma que as coisas vão quebrar sozinhas, e muitas vezes o conserto nem passa pela nossa mente. Se algo foi projetado pra quebrar, de que adianta lutar contra isso? Da mesma forma, existem marcas exibindo o conceito de durabilidade como uma vantagem comercial, como se o “normal” fosse o descarte, e essa durabilidade fosse especial.
O que significa, então, adotar o hábito de consertar nossas coisas e prolongar sua vida útil, mesmo que isso seja mais trabalhoso do que simplesmente jogar fora e adquirir um novo? Talvez você se sinta melhor porque doa suas coisas ao invés de jogar fora, mas o quão genuinamente gentil é doar algo quebrado ou sem manutenção? Será que não é só um outro tipo de descarte (nesse caso, da responsabilidade de consertar)?
Há uma montanha de lixo no deserto do Atacama, no Chile, composta por roupas produzidas na China e em Bangladesh, e compradas, vestidas e então descartadas nos Estados Unidos ou na Europa. Uma pesquisa da Digital Turbine de 2022 mostrou que 41% dos brasileiros troca de celular sem nenhum motivo específico, apenas porque “está na hora de trocar”. Dados como esses são capazes de demonstrar que o descarte é um hábito da sociedade capitalista muito antes de ser uma necessidade. Essa edição não é um discurso de culpabilização individual: se eu nunca mais comprar nenhuma peça de roupa, a montanha de lixo no deserto vai continuar a crescer. Não é sobre mim ou sobre você em particular. Mas o fato de ser um problema estrutural não tira minha autonomia de pensamento, e eu me sinto capaz de questionar essa lógica, e não apenas de forma prática, como algumas pessoas fazem de forma muito mais efetiva e radical do que eu poderia imaginar (a Cristal Muniz, do blog Uma Vida Sem Lixo, decidiu viver com lixo zero há quase 10 anos, e ela está conseguindo).
Como designer e uma pessoa que se importa com as coisas, eu não quero ver essa questão apenas de forma racional e lógica, mas também de forma emocional: os objetos que escolhi para serem meus me fazem feliz o suficiente para que eu queira consertá-los e mantê-los por perto? Como eu me sinto quando faço isso?
🏺 Kintsugi e o reparo como filosofia
Nem sempre uma peça reparada vai voltar a ter a mesma aparência de quando era nova. Mas há mesmo um demérito nisso? Kintsugi é uma técnica japonesa de reparo de peças de cerâmica que usa laca misturada com pó de ouro para colar os pedaços quebrados, tornando evidentes as partes emendadas.
Evidentemente, não é nem uma tentativa de obter de volta a aparência original do objeto e nem de economizar dinheiro. Kintsugi é uma arte: a peça reparada é valorizada não apenas pelo ouro, mas pelo trabalho do artesão. Paulo Hatanaka, restaurador e especialista em Kintsugi fala sobre essa filosofia e mostra um pouco do processo em um vídeo da Japan House:
Como erguer, quando um pedaço se vai?
Tatiane Freitas é artista visual e autora da série “My Old New”, uma obra sobre o tempo e a fluidez onde ela completa artefatos de madeira com acrílico transparente, evidenciando as partes que faltam. Pra mim, é uma espécie de Kintsugi atualizado - artefatos transformados em arte pelo reparo.
🏭 O que o design pode fazer sobre isso?
Fui buscar uma sugestão de resposta para essa pergunta em um dos meus livros preferidos: Design para um mundo complexo, de Rafael Cardoso (já recomendei essa leitura algumas vezes, nas edições #8 e #39 da newsletter). Digo uma sugestão de resposta porque certamente não há uma única possibilidade, mas alguns caminhos que podemos buscar. No subcapítulo “O ciclo de vida do artefato”, Rafael diz que:
“Os designers não controlam políticas públicas, não comandam as redes de fabricação e nem são responsáveis pelo desenvolvimento de novos materiais e tecnologias. Além de descartar menos e reciclar mais –algo que está ao alcance de qualquer indivíduo, independente de sua profissão –pode parecer que há muito pouco a ser feito na hora de projetar. Um ou outro profissional pode se negar a gerar novos artefatos, alegando que não quer contribuir para o acúmulo de coisas no mundo, mas isso não vai impedir que outras pessoas o façam. Contudo, existem sim contribuições importantes que podem ser feitas na etapa do projeto, contanto que se entenda o ciclo de vida do produto de modo mais abrangente.”
O autor propõe que designers rompam com o “ciclo de vida do produto” como teoria de marketing, que prevê um declínio ou descarte, e adotem o ciclo de vida circular. Um ciclo que não termina depois do uso, mas que prevê um pós-uso, que pode se concretizar de muitas formas: o reparo (você projetou algo cuja manutenção é fácil?), a biodegradação (quais os materiais utilizados?), a desmontagem e reutilização das peças em outros produtos (o design modular é uma opção), a ressignificação da função (um vidro que um dia comportou uma vela aromática pode se tornar um porta-lápis), etc.
Não é fácil projetar para um futuro que não conhecemos, mas é preciso reconhecer que o descarte não é o fim de um objeto: ele vai continuar lá, mesmo que seja como lixo ou resíduo. Isso pode parecer que só vale para produtos materiais, mas não é verdade. Talvez eu fale sobre isso na próxima edição - mas a poluição informacional já é uma realidade com a qual vamos precisar lidar mais cedo ou mais tarde. O que você tem criado é descartável ou é perene?
⚠️ importante: a makers vai mudar ⚠️
a partir de agosto de 2023, a makers gonna make vai adotar um modelo de conteúdo um pouco diferente:
para assinantes gratuitos, as edições semanais continuam chegando normalmente por email toda terça-feira pela manhã
já o acesso às edições no site, makersgonnamake.substack.com, ficará limitado a 30 dias. depois desse período, o acesso aos arquivos fica fechado para assinantes pagos
para ter acesso aos posts antigos + uma edição extra mensal + presentes físicos, como zines e pôsteres, apoie a newsletter através do apoia.se/makersgonnamake ou diretamente pelo substack no botão abaixo:
obrigada por ter lido até aqui! ando pensando muito em sustentabilidade, mas não só no sentido de ecologia. a internet, por exemplo, não me parece nada sustentável, com tanta informação “descartável” sendo produzida a cada segundo. e mesmo sendo assuntos meio distantes entre si - descarte físico e virtual - não consigo pensar neles de forma independente. é cultural que estejamos tão prontos pra jogar qualquer coisa fora. e você, o que acha? fique a vontade para responder esse e-mail - espero que esse possa sempre ser um espaço de troca. e se você gostou da edição, compartilhe com alguém que vai aproveitar essa leitura também :)
eu fico impressionado como você consegue passar uma sensação de que cada edição levou meses para ser escrita — isso se realmente não foi essa a duração. referências, citações, imagens, aprofundamento... sério, hele!
sei que é abuso, mas toparia bater um papo um dia que não for te atrapalhar pra me contar mais sobre esse processo e como você escreve? tô como editor do UX Collective Brasil, começando a “soltar a voz” e tô com uma dificuldade imensa; aí quando olho pros seus textos, penso: é assim que eu quero ser!
vamos conversar?
Que texto gostoso! Vc sabia que a cristal tem uma News? Ela falou sobre a vida lixo zero numa das edições... Inclusive que ela não é mais rigorosa consigo mesma. Gostei das ideias de mudança da News! 💌