#96 design & a Palestina
uma reflexão rápida + duas iniciativas de design pró-Palestina para conhecer | tempo de leitura: 8 minutos
oie! seja bem-vinde a mais uma edição da makers :) eu sou hele carmona, jornalista, designer e artista multimídia. já escrevi sobre como todo design serve ou subverte o status quo, mas também como o design sozinho não pode ser considerado ativismo se não estiver atrelado à luta e ao envolvimento real em movimentos coletivos. tenho me perguntado há algum tempo qual seria a forma mais adequada de falar sobre a Palestina numa plataforma como a makers, cujo o foco é design e criatividade, mas que permeia assuntos como cultura e conflitos sociais. acabei decidindo por falar sobre duas iniciativas de design com atuação local e prática: Disarming Design from Palestine e Visualizing Palestine. vamos?
Design, internet e ativismo
Vivendo e agindo dentro de um modelo de vida que mistura o offline e o online, não é difícil confundir expressão e ação. Em Falso Espelho, Jia Tolentino observa que aceitamos nossas ações online como um substituto barato para o envolvimento social, diante da falta de tempo para nos envolvermos física e politicamente com nossa comunidade. Nessas circunstâncias, uma opinião ou declaração (“sou pró-Palestina”) deixa de ser o primeiro passo em direção a algo concreto e começa a parecer um fim em si mesma. Isso é o que me angustia quando falamos de “Design Ativista”. Jia continua:
A internet põe o “eu” em tudo. A internet faz parecer que demonstrar apoio a alguém significa realmente compartilhar aquela experiência, assim como faz com que a solidariedade pareça uma questão identitária, não política ou moral, cujo melhor momento para vir à tona é o ponto em que ambos os lados se encontram mais vulneráveis. Sob esses termos, em vez de expressar minha solidariedade moral óbvia à luta dos negros americanos sob um estado policial, a internet me encoraja a expressar solidariedade através da minha própria identidade. (…) Essa estrutura, que põe o eu no centro da expressão de apoio aos outros, é bastante problemática.
Consciente disso, e sem saber se sou capaz de evitar essa armadilha, relutei em escrever essa edição; tive receio de estar apenas ecoando peças gráficas de boa intenção, mas sem muito significado palpável (deixo essa discussão pra esse ótimo artigo). Por fim, decidi falar sobre duas iniciativas que relacionam diretamente o design enquanto disciplina e a vida na Palestina hoje.
Disarming Design from Palestine
Disarming Design from Palestine (DDfP) é uma organização independente sem fins lucrativos que atua como selo de design e plataforma de ensino-aprendizagem. Desde 2012, eles promovem a criação de produtos que expressam mensagens poéticas e políticas sobre a vida cotidiana na Palestina ocupada. A iniciativa surgiu como um projeto do artista Khaled Hourani e da designer Annelys Devet, reunindo estudantes, designers e artesãos locais em oficinas colaborativas.
“Damos grande importância a produtos artesanais feitos de forma consciente, que evidenciam a realidade intensa em que são produzidos. Essa é uma das formas que encontramos para enfrentar a marginalização vivida por artesãos e designers, independentemente do nível de atividade, como consequência da ocupação israelense na Palestina.”
Embora registrada na Bélgica, a DDfP atua localmente na Palestina e remunera diretamente os artesãos e designers envolvidos, sem intermediários, garantindo pagamentos justos. Os produtos são vendidos online, em eventos e em lojas de museus, e toda a receita é reinvestida em novas produções. Além do trabalho narrativo e poético no desenvolvimento e curadoria das peças, cada produto conta com um vídeo e fotos que mostram detalhes de sua produção. A plataforma mantém também um blog com relatos ou ensaios derivados de workshops e oficinas, registros visuais e reflexões sobre como o design pode ser uma prática coletiva e crítica.
Bird plate / صحن الطّيور
Prato de cerâmica pintado à mão, para compartilhar sobras de comida com os pássaros, pelo artesão Maher Shaheen. A obra convida a refletir sobre insegurança alimentar e perda da biodiversidade na Palestina. Na página do produto, há links para leituras sobre esses temas.
Palestime / فلستايم
A ocupação israelense distorce o tempo na Palestina, tornando deslocamentos imprevisíveis e longos. Palestime é uma ampulheta disfuncional: um lado marca o tempo de forma regular, o outro é lento e aleatório, simbolizando o tempo perdido no cotidiano palestino. Feita à mão em Jaba, na Cisjordânia, a peça combina a tradição vidreira local e um mecanismo que altera o fluxo da areia causando o efeito desejado.
Leaf behind earrings / أقراط الأذن "أترُك خلفَك"
Brincos de prata moldados a partir de folhas reais de oliveira, colhidas no jardim da artesã Sawsan Rishmawi. Cada folha é prensada em gesso, queimada e substituída por prata fundida, resultando em réplicas únicas dessas folhas. O nome é um jogo de palavras: leaf behind / leave behind. Na página do produto, há links para leituras sobre a simbologia das oliveiras e sua importância cultural e econômica para a Palestina.
“Amamos nossas oliveiras. Quando estamos de pé sobre a terra, com suas raízes sob nossos pés, sentimos uma à outra. Nossas raízes se mantêm firmes e silenciosas na terra. Ninguém vai nos mover.”
Visualizing Palestine
Visualizing Palestine é uma iniciativa de design de informação que transforma dados e pesquisas em infográficos sobre a realidade palestina. Acreditando no poder da imagem para gerar empatia e compreensão, o projeto cria representações visuais que tornam acessíveis temas complexos, como ocupação territorial, mobilidade, acesso à água, educação e direitos humanos. O objetivo é contribuir ativamente para a mudança de narrativas sobre a Palestina, enfrentando o apagamento sistemático promovido por discursos coloniais e hegemônicos.
“Usamos dados e pesquisas para comunicar visualmente as experiências palestinas, com o objetivo de provocar uma mudança de narrativa. Imaginamos um futuro livre e justo para os palestinos, em um mundo sem opressão.”
A clareza e o cuidado com os dados permitem que informações que costumam ser negadas ou distorcidas circulem de forma mais ampla e acessível. Cada visualização publicada no site traz links para as fontes de dados utilizadas e versões disponíveis em outros idiomas (inclusive, a plataforma convida quem quiser a colaborar com novas traduções). Além disso, a Visualizing Palestine adota o ethos Creative Commons, permitindo que qualquer pessoa baixe, use e compartilhe os infográficos livremente.
Remember their names
O gráfico interativo “Remember their names” apresenta os nomes de 50.020 palestinos mortos pelas forças israelenses em Gaza entre 6 de outubro de 2023 e 22 de março de 2025. A visualização inclui apenas as vítimas cujos nomes e idades puderam ser identificados pelo Ministério da Saúde de Gaza. Milhares de outras pessoas permanecem sem identificação, seja porque seus corpos foram destruídos a ponto de não poderem ser reconhecidos, porque não há familiares sobreviventes para identificá-las ou porque os corpos ainda não puderam ser recuperados em meio ao genocídio em curso.
Shrinking Palestine
“Shrinking Palestine” descreve as ferramentas militares, legais e financeiras utilizadas pelo movimento sionista ao longo do último século para tomar terras palestinas. A visualização mapeia a fragmentação gradual e contínua da Palestina histórica, além da exclusão sistemática dos palestinos da maior parte de seu território de origem. O ifnográfico também está disponível numa versão interativa.
Six Wars Old: Sixteen Years of Childhood in Gaza Infographic
Esse infográfico mostra como a infância em Gaza é marcada por violência constante. Desde 2007, centenas de milhares de crianças (que representam cerca de metade da população de Gaza) cresceram sob condições extremas de restrição e insegurança. Em maio de 2021, 67 crianças palestinas foram mortas em apenas 11 dias de ofensiva israelense. Para quem sobrevive, os períodos de cessar-fogo pouco mudam a realidade. A visualização destaca seis ataques militares israelenses em dezesseis anos, revelando o impacto da guerra sobre gerações inteiras.
Eu me considero uma pessoa moderadamente informada sobre o noticiário mundial, mas confesso que, enquanto organizava essa edição, vários infográficos da Visualizing Palestine me chocaram. Me deparei com temas que desconhecia, como a utilização de sistemas de IA para automatizar o genocídio palestino (1, 2). Já enquanto escolhia quais produtos da Disarming Design destacar, fiquei feliz e comovida ao ver o cuidado com que práticas criativas e artesanais palestinas são documentadas no projeto. É, de certa forma, reconfortante ver essas pessoas nomeadas e retratadas como são: artistas, e não apenas vítimas da guerra. Se você conhece alguma outra iniciativa interessante, compartilhe nos comentários comigo e outros leitores :)
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Desde 2022 eu escrevo e publico ensaios sobre design, criatividade, cultura e trabalho. Criei a makers porque ela é a newsletter que eu gostaria de ler: uma publicação que fala sobre design de forma descomplicada, mas não simplista. Prezo muito pela confiabilidade das informações que publico e sou eu quem pesquisa, escreve e edita cada texto. Já são mais de 80 edições gratuitas enviadas para +3 mil pessoas, além de zines e impressos autorais.
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obrigada por ler até aqui! antes de terminar a edição, queria lembrar que abri uma chamada para envio de textos sobre design & inteligência artificial para compor a primeira publicação coletiva da hele press. envie seu texto ou rascunho e se você conhece alguém que pode se interessar, compartilhe a chamada! beijos e até a próxima terça. <3
que edição bacana, hele!
cara, o remember their names me impactou muito.