#67 coisas de homem e coisas de mulher
talvez eu goste de coisas rosa e talvez isso não queira dizer nada | tempo de leitura: 7 minutos
oie, seja bem vinde a mais uma edição da makers gonna make. eu estava com saudade de escrever sobre gênero, mas admito que sempre procrastino isso porque é difícil pra caramba. então já quero começar dizendo que essa discussão não cabe num e-mail: a ideia é só fazer algumas conexões, explorar raízes históricas e propor reflexões daqui pra frente. afinal, o que são coisas de homem e coisas de mulher, e qual o papel do design nisso?
👩 Coisas “de mulher”
Você pode já ter ouvido falar da Pink Tax ou Imposto Rosa, o nome que se dá para a variação de preços entre artigos alegadamente femininos e masculinos. De acordo com o estudo Taxa Rosa e a Construção do Gênero Feminino no Consumo, de Fábio Mariano Borges, artigos cor de rosa - amplamente direcionados ao público feminino - podem custar até 12% mais. Essa diferenciação ocorre em diferentes mercados, de itens para bebês como roupinhas e brinquedos até as dezenas de artigos de higiene pessoal: escovas de dente, de cabelo, lâminas de barbear.
Mas o que é, afinal, um artigo feminino? E por que coisas tão banais como lâminas de barbear são segmentadas por gênero?1
No clássico “Objetos de Desejo” (1986), Adrian Forty argumenta que a segmentação de objetos por gênero “sempre existiu”, mas se intensificou consideravelmente no século XIX. A combinação de uma construção de papéis de gênero antagônica na era vitoriana - que colocava mulheres como pequenas, frágeis, e homens como fortes, mas agressivos - e um novo modelo de consumo da classe média, possibilitado pela industrialização, resultou em uma proliferação inédita de variações dos mesmos objetos, agora segmentados por público-alvo.
Adrian Forty analisa alguns catálogos comerciais do final do século XIX - de canivetes, estojos e escovas de cabelo - e conclui que objetos para homens costumam ter dimensões maiores e acabamentos em couro, e objetos para mulheres são menores e com acabamento em marroquim. Mas questiona: por que esse esforço estético específico, se dificilmente dois canivetes ou escovas de cabelo terão mecanismos diferentes para cada modelo?
É que o design, com sua capacidade de “moldar” o mundo físico, é capaz de tornar tangíveis as noções imaginárias de feminilidade e masculinidade. Forty escreve:
“As características não existiam como realidades, mas como idéias; para viver tranquilamente com elas, as pessoas precisavam de provas de sua verdade. A ficção, a educação e a religião contribuíram todas para isso, e o mesmo fez o design. As diferenças entre os estojos de toalete das Army and Navy Stores correspondiam exatamente às diferenças que se dizia existir entre homens e mulheres: duros e grosseiros de um lado, delicadas e refinadas do outro. Porém, ao contrário dos outros portadores dessa ideologia, que se baseavam muito nas palavras, o design era mais potente, pois oferecia sinais duradouros, visíveis e tangíveis das diferenças entre homens e mulheres tal como se acreditava que existissem.”
Se você já lê a makers há algum tempo, sabe que eu acredito que designers criam objetos que, por sua vez, criam a nossa realidade - que cria os nossos designers, que criam objetos - num loop infinito de influência mútua.
Enquanto objetos categorizados com base em gênero eram criados para representar determinados papéis, mulheres e homens os escolhiam porque de alguma forma eles correspondiam às ideias sobre isso presentes no seu imaginário. O uso desses objetos, por sua vez, só reforçava as ideias que deram origem a eles em primeiro lugar.
Como em tudo no mundo capitalista, o lucro também foi um fator que contribuiu para esse movimento por parte dos fabricantes. No século XIX, o consumo passa a ser uma espécie de formador de identidade para a classe média, e portanto produzir variações sutis de um mesmo produto para “pessoas diferentes” oferece uma possibilidade de ganhos maiores para os comerciantes. A variedade de produtos era capaz de persuadir os consumidores a adquirir mais unidades de um mesmo objeto, mesmo sem real necessidade daquela compra - e essa é uma lógica ainda presente no consumo hoje.
Com o tempo, foi se tornando mais barato produzir uma menor variedade de um mesmo instrumento, e os catálogos comerciais foram ficando mais enxutos; mas o costume de separar coisas por gênero-alvo nunca se desfez. Mesmo que alguém não se importe com essa segmentação de modo individual, ela ainda é constantemente praticada ao seu redor como uma norma, tanto pelas empresas quanto pelos consumidores.
🚻 O padrão se transforma, mas não desaparece
A segmentação de objetos por gênero pode ser uma constante na sociedade há séculos, mas isso não quer dizer que a forma como essas diferenças são expressas não muda ao longo do tempo. Nos anos 2000, a fotógrafa sul-coreana JeongMee Yoon começou a trabalhar na série “The Pink and Blue Project”, na qual fotografava meninas com suas coisinhas cor de rosa e meninos com suas coisinhas azuis. Ela conta em seu site que a série nasceu quando ela observou a obsessão da filha de cinco anos de idade pela cor rosa, e as fotos são bem impressionantes:
Em seu site, JeongMee reflete sobre como esse padrão, apesar de expressivo, nunca foi imutável:
“O rosa já foi uma cor associada à masculinidade, considerada um vermelho diluído e que detinha o poder associado a essa cor. Em 1914, o The Sunday Sentinel, um jornal americano, aconselhou as mães a “usar rosa para meninos e azul para meninas, se você seguir as convenções”. A mudança para rosa para as meninas e azul para os meninos aconteceu na América e em outros lugares somente após a Segunda Guerra Mundial. (…) Hoje, com os efeitos da publicidade nas preferências dos consumidores, estes costumes de cores são um padrão mundial.”
A fotógrafa continua trabalhando na série, propondo atualizações. Em um artigo publicado em 2019 no portal It’s nice that, ela fala sobre o processo de revisitar as crianças que fotografou nos anos 2000 e fotografá-las novamente, agora mais velhas:
“Alguns dos meus participantes mais velhos permaneceram firmes na sua preferência pelos mesmos objetos rosa e azuis”, diz JeongMee. “Outros mudaram a preferência de cor ou tornaram-se ambivalentes em relação à identificação de cores. Alguns se recusaram a posar para fotos porque não se sentiam mais confortáveis diante das câmeras. Meu novo trabalho examina meus temas mais profundamente, depois que a fachada colorida desaparece”, diz a fotógrafa.
No fim, os fabricantes querem o nosso dinheiro
As percepções de gênero vem mudando, sim - hoje, a ideia fixa de que rosa e azul são cores de menina e menino é associada a figuras tenebrosamente conservadoras. Agora, da parte das empresas - eu adoraria viver em um mundo em que cada resquício de progresso social fosse genuíno e não imediatamente capitalizado de volta, mas não consigo ver a realidade dessa forma.
Assim como no século XIX a segmentação por gênero gerava lucro, se hoje há empresas minimamente vocais sobre igualdade isso ocorre porque, bom, elas ganham alguma coisa com isso. Essa coisa é dinheiro, by the way.
Entendo que são padrões difíceis de quebrar. Se uma marca quer atingir todos os gêneros com uma única variação de um produto, dificilmente vai projetá-lo na cor rosa. Em azul ou preto, talvez; mas não rosa. A feminilidade é sempre um lugar de alteridade, e o “neutro” proposto tende a se aproximar do padrão “masculino”. Não é uma empresa ou designer que vai mudar isso.
Mesmo quando pensamos em identidades de gênero e sexualidade consideradas desviantes da norma, a armadilha da identidade e posicionamento político-social através do consumo se mantém: é cada vez mais comum ver produtos caracterizados com arco-íris e outras bandeiras LGBTQIA+ sendo direcionadas a esse público. Ter uma mochila com alças de arco-íris (eu estou pensando em Kankens) te posiciona como alguém favorável a uma série de políticas associadas a gênero e sexualidade, na mesma lógica dos canivetes de Forty: a dimensão física torna a dimensão imaginária tangível, visível.
Vou deixar uma última recomendação de leitura, o ensaio “Ainda existe design(er) ativista?”, de Eduardo Souza para a Revista Recorte. Entre outras coisas, ele discorre sobre como qualquer posicionamento político pode ser sequestrado pelos ideais do consumo. Um pouco deprimente, sim - mas impossível de ignorar.
Leia também: edição #30 - 𝓂𝓊𝓁𝒽𝑒𝓇, não: mulher, sobre gênero e tipografia
obrigada por ler até aqui! sem muitas conclusões por hoje, não é? como sempre, fique a vontade para responder esse e-mail se quiser conversar, compartilhar algo ou até mesmo criticar algum ponto da newsletter. espero que esse possa sempre ser um espaço de troca. e se você conhece alguém que pode curtir esse texto, que tal compartilhar essa edição? :)
Aqui é importante fazer um recorte: estamos falando de um sistema de gênero ocidental e europeu, que é binário e dividido entre “homem” e “mulher” - porque é esse sistema que determina de modo geral a segmentação de objetos industriais no mercado brasileiro. Pelo menos eu ainda não vi Gilette direcionado para o público não-binário, hehe.