#66 o problema com a adobe
a empresa que é a maior "frienemy" de quem trabalha com design gráfico | tempo de leitura: 9 minutos
eu confesso que não conheço a definição técnica de um monopólio, tipo, de acordo com a lei. mas quem trabalha com criatividade em ambientes digitais provavelmente pode atestar a assustadora dominância da Adobe. o Photoshop, por exemplo, é utilizado por 90% dos profissionais criativos1 e é tão popular que se tornou quase sinônimo de manipulação de imagens - não é incomum ouvir alguém dizer “ah, isso é photoshop” sobre uma foto que parece alterada. mas como a Adobe chegou até aqui, e como sua aparente hegemonia afeta a vida e o trabalho de profissionais criativos?
🧪 A fórmula do sucesso
Como boa parte das empresas de tecnologia muito grandes, a Adobe começou sua história com algo considerado nobre: uma ideia (e sua execução eficiente) que revolucionou tecnicamente o trabalho gráfico. Fundada em 1982 por John Warnock e Charles Geschke, seu único “produto” inicialmente era a linguagem PostScript, que permitia a impressão de gráficos complexos e de alta qualidade em impressoras à laser. Explicando de forma leiga, isso permitiu a editoração de gráficos e documentos com aparência profissional com computadores e impressoras comuns.
Depois, muitas aquisições estratégicas. Um vídeo do Wall Street Journal, “How Adobe Became One of America’s Most Valuable Tech Companies”, explica brevemente a história da companhia. É claro que eles explicam com um ar de admiração a tanta genialidade, tanta visão de mercado. Em 1994, a Adobe se fundiu com a competidora Aldus, então proprietária do PageMaker (hoje InDesign) e do After Effects. O próprio Photoshop, produto mais popular da Adobe, foi uma aquisição feita em 1995. E eles seguiram absorvendo concorrentes em diversas áreas do setor gráfico digital: flash, vídeo, 3D, a lista é enorme.
Mas a grande sacada ainda estava por vir. Em 2011, a Adobe, que antes vendia o Photoshop por uma única transação de até 1.500 dólares (sim! 1.500 dólares!) passou a oferecer seus produtos no modelo SaaS, software as a service. Por apenas 50 dólares por mês2, os usuários poderiam usar qualquer um dos softwares do grupo.
Parece vantajoso, mas só é pra eles. Quando eu descobri o valor da compra de um software antes do modelo de assinaturas eu fiquei meio chocada com o abismo entre os valores - de US$ 1.500 pra US$ 50. Parece bom. Mas ao fazer as contas, pude constatar que em 30 meses, menos de 3 anos, eles arrecadam o primeiro valor. Só que aí o problema é seu: você não pode parar de usar o Photoshop, o Illustrator ou o Premiere e vai continuar pagando. Pra sempre. Porque com seu combo de inovação, aquisições e modelo de assinaturas a Adobe se tornou um padrão na indústria criativa.
🚫 Como a dominância da Adobe no mercado prejudica profissionais criativos?
Eu destacaria três formas: exploração financeira, dependência técnica e limitação de possibilidades criativas.
A primeira é mais fácil de entender: com o modelo de assinaturas, a empresa impõe uma dívida eterna à uma classe já bastante desvalorizada. A profissão de designer enfrenta uma série de desafios no Brasil e uma delas é a remuneração baixíssima. De acordo com o Vagas.com, com base nas vagas cadastradas no site, a média salarial para o cargo de designer é de R$ 2.500 (o que é bizarramente baixo - mas essa é uma discussão pra outra edição). Isso quer dizer que uma assinatura do Creative Cloud (atualmente no valor de R$ 224/mês) gasta 10% desse salário. No Glassdoor, a remuneração média baseada no banco de dados sobe para R$ 4.800 - mas ainda é 5%. Pode-se argumentar que esse deveria ser um gasto das empresas, mas será que uma empresa que pratica esses salários vai fazer isso, sobretudo na era da PJotização e do home office sem fornecimento de equipamento ou auxílio de custos? E os freelancers? O que acontece, no fim, é que muitos profissionais recorrem a pirataria - mas isso nos leva ao segundo ponto problemático, a dependência técnica.
Gratuidade não resolve o problema, porque ninguém que não pode pagar pela assinatura do pacote Adobe simplesmente opta por softwares gratuitos ou mais baratos - só recorrem à pirataria dos produtos da Adobe. Agora, não está em discussão se isso é certo, errado, se é um mal inevitável. Mesmo com a pirataria, a base do problema não se move: é que é quase impossível trabalhar com design sem esses softwares - somos como reféns. O mercado se moldou de tal forma que “domínio em Photoshop/Illustrator/InDesign” parece um tópico ubíquo nos requisitos de vagas de emprego. Por um lado, dá pra dizer que toda profissão tem seus gastos básicos recorrentes e requer habilidades específicas. A questão é que habilidades como edição de imagens e diagramação se converteram em “domínio em Photoshop” e “demínio em InDesign”, como se fossem a mesma coisa.
Por fim, essa dependência técnica acarreta em uma limitação de possibilidades criativas. Quantos de nós nos permitimos pensar em soluções de design que vão além do que os softwares da Adobe podem fazer? Está cada vez mais difícil evitar essa conversão dos princípios de design gráfico em operações de ferramentas. De que forma um designer que usa esses programas e talvez só eles como ferramentas para expressão criativa pode evitar essa limitação? Não é uma pergunta simples, mas fica o convite para refletir: quando foi a última vez que você propôs uma solução de design externa aos softwares que usa no dia a dia?
🔀 Quais são as alternativas?
As alternativas se dividem em dois caminhos (na verdade devem ser infinitos, mas só vou falar desses. E-mails têm limite de tamanho). O primeiro é optar por usar produtos de outras empresas, como o Canva ou o Figma. Mas apesar de serem softwares que são bons naquilo que se propõem, eles não conseguem acumular a quantidade assustadora de produtos e ferramentas dentro do Creative Cloud, que conta com mais de 20 produtos. Além disso, não é como se a Adobe fosse deixar a concorrência crescer em paz. Eles chegaram a tentar comprar o Figma, e em dezembro de 2023 tiveram que desistir devido a impasses regulatórios, já que a aquisição ameaçaria a concorrência - como se já não estivesse prejudicada o suficiente. Já em resposta ao sucesso do Canva, a Adobe lançou o Adobe Express em 2015, uma ferramenta gratuita (“freemium”) que é basicamente igual o concorrente. Eles nem tentam disfarçar muito:
O segundo caminho possível é a adoção de softwares livres. Eu peguei a descrição de software livre do site GNU.org, sendo GNU um sistema operacional livre criado por Richard Stallman nos anos 1980 e que “inaugurou” o movimento de software livre. Richard é até hoje um dos principais ativistas da causa.
Por “software livre” devemos entender aquele software que respeita a liberdade e senso de comunidade dos usuários. Grosso modo, isso significa que os usuários possuem a liberdade de executar, copiar, distribuir, estudar, mudar e melhorar o software. Assim sendo, “software livre” é uma questão de liberdade, não de preço. Para entender o conceito, pense em “liberdade de expressão”, não em “cerveja grátis”. Por vezes chamamos de “libre software” para mostrar que livre não significa grátis, pegando emprestado a palavra em francês ou espanhol para “livre”, para reforçar o entendimento de que não nos referimos a software como grátis.
Você pode ter pago dinheiro por suas cópias de software livre, ou você pode tê-las obtido a custo zero, mas independentemente de como você conseguiu suas cópias, você sempre deve ter a liberdade para copiar e mudar o software, ou mesmo para vender cópias.
Assim, optar por softwares livres não é só sobre não pagar uma mensalidade (isso a pirataria resolve) mas sobre participar de um movimento coletivo pela democratização desse tipo de programa. Para o Photoshop e o Illustrator, programas mais utilizados da Adobe por designers do meio gráfico, as alternativas seriam respectivamente o GIMP e o InkSpace. É verdade que eles não possuem todas as mesmas funcionalidades e que optar por adotá-los no dia a dia pode exigir mudanças e adaptações no fluxo de trabalho - mas isso também seria verdadeiro para as alternativas privadas, como o Canva e o Figma, e portanto não faz sentido que seja um impeditivo por si só.
Longe de querer desencorajar qualquer pessoa, entendo que adotar alternativas não é simples assim: pra maioria das pessoas é só mais fácil usar os produtos da Adobe e é complicado moralizar isso enquanto estamos inseridos num mercado que já tem tantos problemas, a maioria empurrados para os profssionais individualmente. Mas mesmo que as mudanças sejam lentas, não faz mal conhecer algumas alternativas.
🅰️ You’ve heard of Adobe, now get ready for… Abode
Abode é o nome de um projeto iniciado por Stuart Semple no ano passado. Como eu já mencionei na makers gonna make #19, “O problema com a Pantone”, Stuart é um ativista pela liberação e democratização de materiais e ferramentas utilizadas no trabalho criativo. Em junho de 2023 ele lançou um crowdfunding e arrecadou mais de 180 mil euros (quase um milhão de reais) para desenvolver uma suite de softwares chamada “Abode”, sob a justificativa de que “há uma necessidade realmente urgente de um conjunto de ferramentas criativas para criadores que eles realmente possuam, em vez de alugar”.
O trabalho de Stuart é sobretudo satírico, mas ele alega que de fato pretende desenvolver softwares compatíveis e que possam rivalizar com os da Adobe, com lançamento previsto para novembro de 2024. Ele vai ser processado? Com certeza, mas não deve ser a primeira vez, isso é tipo o trabalho dele. Se ele vai conseguir chegar em bons softwares não se sabe, mas não deixa de ser uma afronta interessante. E eu dei uma risadinha quando soube, então valia a pena entrar na edição.
obrigada por ler até aqui! it may come as a shock mas eu sou humana e sim, atrasei a newsletter. acontece, e conto com a compreensão de vocês :) como sempre, fique a vontade para responder esse e-mail se quiser conversar, compartilhar algo ou até mesmo criticar algum ponto da newsletter. espero que esse possa sempre ser um espaço de troca. e se você conhece alguém que pode curtir esse texto, que tal compartilhar essa edição? :)
De acordo com a própria Adobe. Fonte: Adobe Fast Facts.
É meio difícil encontrar dados sobre quanto as coisas custavam quando eu estava no sétimo ano da escola e usava um Photoshop craqueado que baixei no 4shared. Em minha defesa, aos 11 anos, eu nem sabia que se pagava por software. Eu posso estar sendo um pouco imprecisa, mas a cifra de 1.500 doláres tirei dessa matéria de 2010 da CNN, “Adobe's new Photoshop: Worth the upgrade”, e o valor das assinaturas (50 dólares) em 2011/2012, de uma notícia publicada pela própria Adobe, “Adobe Launches Creative Cloud”.
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