#62 cartas de baralho, usabilidade e evolução
+ um convite no final da edição! | tempo de leitura: 7 minutos
todo mundo tem um objeto do cotidiano que gostaria de reprojetar, melhorar. pode ser um fone de ouvido, um tipo de zíper, a tampa da caixa de leite. mas tem um artefato em específico que eu já vi artistas e designers recriarem centenas de vezes sem necessariamente tentar “melhorar” sua usabilidade: as cartas de baralho. é quase como se o design fosse tão bom que não precisa de outra proposta. surgem novas leituras estéticas, mas os detalhes do design original que as tornam tão boas de jogar dificilmente são alterados. eu adoro olhar mais atentamente para designs considerados “cristalizados”, e na última semana me dediquei a pesquisar um pouco sobre a evolução visual e gráfica dos baralhos. vamos?
♣️ Para começar do começo: de qual baralho estamos falando?
Um baralho é, em tese, qualquer conjunto de cartas ilustradas e numeradas. Mas há um tipo particular que vem à mente da maioria das pessoas: o modelo mais popular ao redor do mundo é o padrão francês.
Na edição #51, “Canetas bic e posts virais”, eu falei sobre como é comum olharmos para objetos cotidianos bem resolvidos em termos de design e assumirmos que eles surgiram assim - especialmente quando uma mesma versão é popular há muitos anos. No caso do baralho, o design mais difundido hoje é o mesmo desde os anos 1880; mas até chegar nesse ponto foram séculos e séculos de evolução. Cartas são objetos pequenos, mas eu diria que essas contém uma alta densidade de cuidado com o visual e a usabilidade, por mais que o termo ainda não fosse utilizado na época da sua concepção.
♦️ Quanto tempo demora pra um design ficar bom a ponto de se “cristalizar”?
Acredita-se que os primeiros conjuntos de cartas para jogos surgiram na China no século X e que as versões mais antigas conhecidas eram utilizadas para representar dinheiro - daí os números e alguns dos símbolos utilizados, como o naipe de ouros (originalmente “moedas”). Nessa época eles eram impressos a partir da técnica de xilogravura.
Os baralhos foram se popularizando e se espalhando para além da Ásia, e no século XIV foram introduzidos na Europa por mercadores árabes. Lá foram surgindo, ao longo dos anos, mudanças de design que nos trouxeram até o padrão atual. Elaborei uma breve comparação entre o baralho europeu mais antigo conhecido1 , o Flemish Hunting Deck (que hoje está no MoMA) e o padrão atual.
No final do século XV os símbolos dos naipes foram muito simplificados, presumidamente para cortar custos e facilitar a produção em larga escala. Isso somado aos avanços tecnológicos no campo gráfico na Europa no mesmo período contribuiu para o barateamento dos baralhos.
Os numerais nas extremidades das cartas foram adicionados para permitir que os jogadores conseguissem visualizar todas elas enquanto as seguram com uma única mão em formato de leque. Eles foram introduzidos pela primeira vez em 1693 e popularizados a partir do século XVIII.
A simetria nas cartas referente à nobreza foi criada para que o jogador possa identificar a carta rapidamente mesmo que esteja de cabeça pra baixo e também para que jogadores em lados opostos de uma mesa possam ter a mesma visibilidade das cartas dispostas. Essa característica foi inventada em 1745.
Apesar do baralho mais antigo ser arredondado, muitos dos conjuntos de cartas posteriores eram retangulares, com as extremidades pontudas. As pontas retangulares costumam estragar mais fácil e poderiam ser utilizadas para trapaça ou revelar o valor de uma carta acidentalmente. Pontas arredondadas acabaram por se tornar o padrão.
O verso das cartas é ornamentado com padrões complexos para tornar mais difícil a identificação das cartas, seja através da iluminação ou de pequenas marcações no verso, como arranhões, que poderiam ser utilizados para trapacear. Essa característica se tornou preferência a partir da metade do século XIX. Hoje em dia, além disso, algumas cartas de baralho são confeccionadas com papel empastado (quando várias folhas são coladas juntas para formar um substrato mais resistente) com cola preta, para aumentar a densidade das cartas e impedir que a passagem de luz revele o valor de alguma delas.
É claro que todas essas mudanças no padrão de design dependeram do contexto tecnológico em que estavam inseridas e de diversas pessoas envolvidas na sua produção; nenhuma das quais era conhecida como “designer”, já que esse rótulo profissional só surgiu muito depois. Mas todas essas mudanças de design tem algo em comum: elas surgiram a partir da observação do uso das cartas e da identificação de possíveis problemas ou dificuldades encontradas pelos jogadores, como o desgaste do baralho e as diversas possibilidades de trapaça.
Hoje em dia nós lidamos com tantas mudanças de design em interfaces do nosso dia a dia (redes sociais, principalmente; mas também em vários serviços públicos, por exemplo) que parecem ter sido tomadas unilateralmente pelos designers - redesigns que ninguém pediu e ninguém gostou, alguns que acabam sendo cancelados, como aquela vez que inexplicavelmente o Instagram mudou o sentido da rolagem do feed para horizontal - que fiquei feliz de olhar com um pouco mais de curiosidade para um artefato tão antigo e perceber que ao longo da sua história ele recebeu melhorias que realmente partiram das necessidades dos seu usuários, os jogadores.
🃏 Why so serious?
Aqui vai uma curiosidade: a carta coringa, o Joker, foi uma adição relativamente recente ao baralho padrão, criada por Samuel Hart no século XIX. Por conta disso, o design dessa carta é o menos padronizado de todo o baralho. Essa gama de variações faz com que seja um tipo de carta mais colecionável, e a maior coleção do mundo pertence a Tony de Santis, que tem mais de 8 mil cartas coringa diferentes.
♠️ Baralho Brasileiro, por Alvaro Guillermo e Meire Vibiano
Fiquei na dúvida se essa informação entraria ou não na edição porque a única fonte que encontrei pra ela foi um site de brindes personalizados para empresas. Mas parece que em 2008 os designers Alvaro Guillermo e Meire Vibiano desafiaram o design tradicional das cartaz retangulares ao propor um baralho brasileiro. De acordo com o site:
“O design diferenciado com medidas mais estreitas e o formato mais arredondado facilitam o manuseio das cartas. “Jogos como buraco, por exemplo, pedem habilidade do jogador por causa do grande número de cartas nas mãos”, aponta Guillermo.
Os naipes e os números são maiores e o fundo branco possui uma pequena porcentagem de cor que associada ao verniz fosco e ao acabamento plastificado do papel impedem o reflexo da luz, facilitando a leitura.”
O projeto foi desenvolvido em comemoração aos 200 anos da chegada da família real portuguesa ao Brasil, e por isso os naipes foram redesenhados para representar coroas. Se eu gostei? Eu não amei, mas eu admiro a tentativa de explorar um novo formato. E adoraria ver mais projetos assim :) Ou será que alguma coisa é tão boa que não pode melhorar?
Falando em jogos de carta, você conhece o Jogo do Bicho? O designer e ilustrador Pedro Melo desenvolveu um baralho pra representar essa contravenção tão popular e tão brasileira, o que resultou num projeto gráfico premiado internacionalmente. Na quinta-feira, dia 9 de novembro, o Pedro vai estar na Esdi para apresentar seu trabalho no Pavão 2023. Vai ser logo depois da minha oficina de formatos de zine! Se você é do Rio ou vai estar por aqui nos dias 9, 10 e 11 de novembro, considere nos visitar :)
obrigada por ler até aqui! como sempre, fique a vontade para responder esse e-mail se quiser conversar, compartilhar algo ou até mesmo criticar algum ponto da newsletter. ah, e se puder e quiser, cola no Pavão!!
Você pode ter se perguntado porque estou comparando apenas modelos europeus. É porque até a chegada na Europa, especialmente em suas variantes persa, árabe e egípcia, os baralhos tinham um visual muito, muito mais elaborado e até artístico. Eles estão tão distantes do padrão de baralho popular hoje que a comparação perderia um pouco o sentido.
Sou meio obcecado com baralhos e tem uma coisa que me incomoda muito em redesigns: quando a ilustração no verso das cartas é assimétrica. Pra mim isso inutiliza o baralho.
(E empolgado aqui que em uma edição você tocou em dois temas de projetos que estou alinhando pra executar no ano que vem... 🥰)
E sobre coleção de curingas, um dos personagens de meu livro favorito (O Dia do Curinga) faz isso, e já ouvi falar de pessoas que fazem influenciadas pelo livro.
Eu AMEI essa edição! ♡