#59 mulheres na tipografia: uma breve linha do tempo
ou "precisamos rever nossas narrativas" | tempo de leitura: 7 minutos
Bodoni, Garamond, Baskerville e Caslon. talvez você não saiba o rosto dessas pessoas, mas deve saber (ou pelo menos supor) que são todos homens. homens que emprestaram seus nomes para batizar algumas das mais importantes famílias tipográficas até hoje. alguém pode alegar que eram outros tempos - daí a ausência de mulheres, certo? mas mesmo no século XX (quando dar seu próprio nome a uma fonte saiu de moda) as criações mais celebradas - como a futura, a times new roman, a helvetica - também são assinadas por homens. esse visão - um pouco superficial, admito - me fez chegar a uma conclusão falaciosa: a de que mulheres haviam se envolvido no ofício tipográfico muito tarde, e era por isso que eu não conhecia seus nomes. mas eu estava errada, e fiquei muito feliz quando percebi isso.
📜 O que você sabe sobre a história das mulheres na tipografia?
O que eu soube, por muito tempo, se resumiu ao fato de que elas não figuram entre os tipógrafos mais lembrados da história do design. Depois, descobri que foram consideradas “inimigas naturais dos livros” tanto quanto os ratos ou a poeira.
Com isso na cabeça, eu naturalizei a ideia de que a participação feminina na tipografia havia sido adiada tanto quanto possível, e que era por isso que eu conhecia tão poucos nomes de mulheres tipógrafas, especialmente na era dos tipos metálicos. Mas apesar disso, há alguns meses eu decidi reunir alguns textos sobre a história das mulheres tipógrafas, uma pequena bibliografia para consultar quando precisasse. Foi quando digitei despretensiosamente “first female typographer” no Google e ... esse título é de Anna Rügerin, que viveu no século XV.
Descobri que há mulheres envolvidas nos ofícios relacionados à tipografia desde muito cedo, incluindo a produção de livros, encadernação, impressão e até a fundição de tipos metálicos. Por isso decidi compilar nessa edição uma breve linha do tempo. Não se trata de uma narrativa realmente linear e muito menos uma sequência definitiva ou completa dos fatos, mas é pelo menos uma longa lista de mulheres de quem pouco se fala, organizada de maneira cronológica. Ao contar um pouco sobre cada uma delas, espero estar combatendo de alguma forma o seu apagamento histórico.
⏳ Breve linha do tempo sobre a atuação feminina na tipografia, de 1481 a 1937
1481/82: Primeiro registro de uma mulher atuando na composição de um livro, uma freira. Não consegui encontrar seu nome, mas de acordo com este artigo do blog I Love Typography, o livro de registros do convento foi encontrado no século XVIII e confirma que ela trabalhou em uma edição de Il Morgante, obra do poeta italiano Luigi Pulci, na editora do convento em que vivia e trabalhava em Florença.
1484: Anna Rügerin é a primeira tipógrafa a incluir seu nome no Colofón de um livro, menos de três décadas depois da invenção da prensa móvel por Gutemberg. O nome de Anna consta nos títulos Sachsenspiegel, uma obra de prosa, e Formulare und deutsch rhetorica, um manual de edição para documentos e cartas. Para ambos os trabalhos ela usou uma fonte gótica criada por Johann Schönsperger, que a pesquisadora Sheila Edmunds acredita ser seu irmão. Aliás, esse é um ponto a ser observado: muitas das mulheres que puderam trabalhar como tipógrafas tinham pais, irmãos ou maridos envolvidos na área. Isso acontecia porque viúvas de impressores costumavam ter permissão para continuar a administrar o negócio dos falecidos para sustentar os filhos1.
[Glossário] Colofón ou colofão é a nota final de um manuscrito ou de um livro impresso, na qual normalmente constam informações sobre a publicação como o nome do autor do livro, o título da obra, o nome do impressor e/ou do editor e o lugar e a data da impressão.
1575: Katharina Gerlachin assume a editora de seu marido após sua morte e publica diversos títulos usando o próprio nome. Sua editora se tornou muito conhecida pelo pioneirismo na publicação de livros de música.
1638: Elizabeth Glover leva a primeira prensa móvel para as Trezes Colônias, a segunda da América do Norte (a primeira estava em Vera Cruz, no México). Ela inaugura uma editora passa a imprimir almanaques, jornais, etc. Após sua morte, a prensa é doada para a Universidade de Harvard, dando início ao que viria ser uma dia a Harvard University Press.
1791: Martha Gurney imprime e vende o panfleto mais amplamente distribuído da história até então. Martha era editora, comerciante de livros e uma ativista abolicionista. Estima-se que tenham sido produzidas de 100 a 200 mil cópias do panfleto An Address to the People of Great Britain, on the Propriety of Abstaining from West India Sugar and Rum, escrito por William Fox.
[Glossário] Um panfleto, historicamente, pode ser uma publicação de até 48 páginas em qualquer temática, de propaganda a discursos políticos - e não só aquele papelzinho que se pega na rua e joga fora.
1860: Emily Faithfull funda a Victoria Press, uma editora que empregava outras mulheres e publicava primariamente jornais, panfletos e revistas feministas. Um dos títulos, a Victoria Magazine, foi publicada mensalmente ao longo de 18 anos.
1912: Hildegard Henning é a primeira designer de tipos sobre a qual temos conhecimento - ou pelo menos a primeira a assinar uma fonte. Ela criou a Belladonna para a fundição Julius Klinkhardt, provavelmente como “freelancer”, já que não era funcionária da empresa.
1930: Beatrice Warde profere o discurso Printing should be invisible, também conhecido como A Taça de Cristal, na Guilda dos Tipógrafos Britânicos. O discurso sobre como a boa tipografia deve ser invisível foi publicado diversas vezes desde então e hoje, quase 100 anos depois, é considerado um cânone do design gráfico. Antes de chegar ao cargo de gerente de publicidade na Monotype, Beatrice publicou diversos artigos sobre tipografia sob um pseudônimo masculino, Paul Beaujon.
1937: O coletivo The Distaff Side publica seu primeiro livro, Bookmaking on the Distaff Side, com o objetivo de trazer algum reconhecimento ao lugar das mulheres na história da impressão. O grupo era composto por mulheres que trabalhavam em gráficas, editoras, estúdios, etc, e o livro foi assinado por mais de 30 mulheres.
Encerro a linha do tempo por aqui porque (1) e-mails são finitos e (2) é relativamente mais fácil encontrar informações sobre mulheres designers e tipógrafas a partir da segunda metade do século XX. Aliás, a partir dos anos 1970 o cenário da tipografia muda completamente com a ascensão dos tipos digitais, e eu precisaria de uma ou duas edições pra isso.
É claro que cada um dos eventos mencionados pode ser muito mais aprofundado, mas aqui a ideia é mencionar mais nomes do que vemos no dia a dia. De todas as mulheres que citei, a única sobre a qual ouvi falar em sala de aula foi Beatrice Warde, o que eu acho meio irônico já que ela um dia usou um nome masculino para publicar seus estudos e descobertas. Não que seja culpa dos meus professores e professoras - o apagamento é sistêmico, ao ponto que é comum naturalizar essa ausência de figuras femininas, como eu fiz por bastante tempo sem nem perceber.
Por fim, se você se interessa pelo assunto, aqui vão algumas recomendações de leitura:
Série Mulheres na Tipografia, no blog Teoria do Design
Escribas, escritoras e Cristina, na Tipo Aquilo
Projeto Women in Type
Blog Alphabettes
Bestie, um TCC sobre mulheres na tipografia que resultou num livro digital
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obrigada por ler até aqui! como sempre, fique a vontade para responder esse e-mail se quiser conversar, compartilhar algo ou até mesmo criticar algum ponto da newsletter. ah, e compartilhe essa edição para que mais pessoas conheçam um pouquinho mais sobre a história das mulheres na tipografia :)
Fonte: https://teoriadodesign.com/mulheres-na-tipografia-freiras-viuvas-entre-outras-familiares-de-mestres-tipografos/