#55 entre os extremos
um ensaio sobre tipografia e o lugar das mulheres na sociedade, por Aasawari Suhas Kulkarni | tempo de leitura: 12 minutos
oie, seja bem vinde a mais uma edição da makers gonna make. no e-mail de hoje envio um ensaio de Aasawari Suhas Kulkarni, designer de tipos e professora de design indiana, que traduzi para o português. o original foi publicado no blog Femme Type e inspirou as edições #2 tipografia & ativismo, #30 𝓂𝓊𝓁𝒽𝑒𝓇, não: mulher e a zine “abaixo o tipatriarcado”, enviada para apoiadores da newsletter e atualmente esgotada. Aasawari reflete sobre sua própria prática enquanto designer de tipografias ao mesmo tempo que problematiza a noção de neutralidade no design. ah, os grifos são meus. vamos?
Declaração de Tese: Podemos normalizar o outro por meio do uso consciente e intencional de tipografias para minar o tipatriarcado, romper com as noções de neutralidade e amplificar o design feminista.
Onde o problema começa: Tipatriarcado
Uma leve lembrança da Centaur, a primeira tipografia que estudei em detalhes, vem a mim quando penso em meus primeiros avanços em direção ao design de tipos, que me levaram ao meu projeto de tese. Gutenberg, cujo retrato plácido eu via todas as vezes que visitava a gráfica de meu pai; Adrian Frutiger, cujas convenções rigorosas de pesos de tipo pavimentaram minhas primeiras tentativas de entender os estilos tipográficos; Bruce Rogers, cuja jornada pelo corte da Centaur me deixou bastante fascinada, todos pioneiros do design de tipos. Todos inspiraram em mim o amor pelo ofício. Todos me atraíram. Todos eram homens.
Mas não se pode culpar simplesmente a educação em design ou a experiência de vida por limitar seu conhecimento periférico. Para falar a verdade, nem mesmo havia mulheres na “periferia” do design de tipos. Nas palavras de Maya Ober, “A relação de poder desequilibrada entre os gêneros na indústria, fortemente incentivada pelos principais stakeholders, criou uma realidade distorcida na qual o modelo machista, heteronormativo, egocêntrico e predominantemente branco de um ‘designer estrela’ homem foi introduzido com sucesso e tem sido mantido desde então”.
A sociedade em que vivemos centraliza e marginaliza diferentes estratos de classes dentro da sociedade. Embora algum tipo de sistema seja necessário para manter um corpo funcionando (seja um corpo de design ou um corpo de pessoas), o problema surge quando o sistema não tem consideração com qualquer um que seja visto como “outro”; normalizar um grupo de pessoas enquanto marginaliza outros. A dinâmica do poder torna-se rígida, consistente e sem consideração. O Tipatriarcado mantém a glorificação consistente, gentrificação consequente e centralização de apenas certos tipos (neutros) de letra; marginalizando quaisquer outras tipografias “experimentais”, não neutras, julgando-as menos funcionais. A indústria vem mantendo essa ordem muito bem.
Historicamente sendo uma indústria dominada por homens, a tipografia limita a contribuição e o pertencimento das mulheres no mundo do design de tipos. Como Loraine Furter reflete: “Desde o início da indústria, a tipografia ocidental sempre foi um campo marcado pelo gênero, dominado e projetado por homens brancos. Desde a criação dos primeiros caracteres para a imprensa, o mercado editorial na Europa atende a uma concepção de tipografia que ainda hoje conhecemos. Nela, as mulheres eram em sua maioria ausentes, invisíveis ou aceitas apenas em funções específicas: limpar as fontes metálicas da tinta de impressão e classificá-las”. Isso chegou aos dias de hoje, onde a tecnologia mais recente definitivamente tornou possível que mais mulheres fizessem parte da indústria de design de tipos de forma proativa, mas, como muitos movimentos feministas, essa é uma mudança lenta — que tem um longo caminho a percorrer para ser verdadeiramente inclusiva, representativa e igualitária.
Mais mulheres também contribuirão diretamente para a multiplicidade do design em termos de expressão.
Chegando ao segundo aspecto do Tipatriarcado, considere as noções de “neutro”. Neutro é normal, popular, porque está associado a sensibilidades mais masculinas e usado para transmitir mensagens políticas, usado como voz para corporações gigantes, usado para sinalizações e rótulos.
“Neutro” se senta quietinho e dá o palco ao conteúdo da mensagem sem muito falar por conta própria. Como quando um homem branco (ou um homem brâmane de pele clara no Oriente) se levanta e diz algo ao mundo, o mundo acredita que é verdade sem fazer perguntas — o que deixa qualquer coisa que não seja neutra para ser associada com “o outro”. Se uma mulher de cor (ou uma mulher de casta baixa no Oriente) se levantar e disser a mesma coisa, isso não será necessariamente afirmado tão facilmente.
O tipatriarcado (assim como o patriarcado no mundo físico) anulou nossas sensibilidades para que percebamos tipos neutros como limpos e seguros quando claramente tudo o que eles fazem é afirmar a normalidade e, o mais importante, se afastar da Expressão.
Como Ellen Lupton pinta vividamente a verdade em Extra Bold, “Os designers gráficos estão inseridos na normas do negócio. Empregamos fontes legíveis e convenções de interface familiares para produzir mensagens aparentemente neutras e amigáveis. Usamos grids, hierarquias e combinações de tipos de bom gosto para unificar publicações e sites. Produzimos padrões de marca e manuais de identidade corporativa para regular a imagem pública de empresas e instituições. A cada ano, colhemos uma nova safra de fontes sem serifa que alegam fornecer conteúdo em blocos de texto anônimos e sem problemas. É o mundo da Helvetica. Nós apenas vivemos nele”.
As normas são o que mantém o patriarcado no lugar. Nós, como designers gráficos, as seguimos para tornar os designs aceitáveis. Para ilustrar com as palavras de Nivedita Menon, “Cada um de nós tem, até certo ponto, a responsabilidade de manter esses protocolos de intolerância, que não poderiam ser mantidos se cada um de nós não fizesse sua parte. Desde criar crianças ‘apropriadamente’, corrigir ou punir amorosamente seu comportamento inadequado, garantir que nunca violemos protocolos, encarar ou rir de pessoas que parecem diferentes, a intervenção psiquiátrica e médica coercitiva, chantagem emocional, violência física — é uma série de deslizes que raramente reconhecemos”.
Da mesma forma, nós designers nos certificamos de seguir o protocolo de design que é visto como aceitável e apropriado. Isso levou a uma escassez de tom e voz no design de tipos, uma aceitação estagnada da “universalidade” do masculino, princípios geométricos para o design de letras, e menos espaço para fluidez por causa de seu estereótipo associado a um estilo mais não-binário, ou a uma abordagem aventureira ao design de letras.
Feminismo como expressão fluida
É quase irônico como as fontes sem serifa lutaram por seu lugar no mundo dos tipos. Como aponta Adrian Frutiger, “O ‘Grotesco’ (subconjunto das fontes sem serifa, classificadas como góticas) tornou-se o instrumento de uma nova factualidade encontrada em busca de uma forma de expressão mais pungente”. Hoje, esses grotescos ocupam o centro do palco ao serem a expressão mais padrão do neutro. Esses acontecimentos na história do design de tipos mostram como o design de tipos deve ser mais do que 'vanilla'. Ainda hoje, o design (de tipos) demonstra gênero e expressão para separar assunto e conteúdo. Por exemplo, nas palavras de Jen Wang, “Em contextos mais sofisticados, a alteridade ainda é projetada por meios tipográficos. As capas de livros de romances literários com protagonistas femininas tendem a ser swash ou serifadas; romances que se passam em países estrangeiros empregam floreios, macramê ou outros clichês e estereótipos culturais — tropos para o consumo branco. Pessoas do sexo feminino e racializadas são comumente retratadas como uma generalização sem rosto de gênero e raça. Isso não apenas reforça a dinâmica de poder de quem é visto e de quem está vendo, mas também reforça o outro como estático, imutável, fixo”.
Essas suposições de marcação de gênero em tipografias nos fazem imaginar o que significaria para uma tipografia ser feminista. O feminismo, na minha opinião, exige que nenhum indivíduo seja tratado injustamente, tenha oportunidades negadas ou seja considerado inferior em razão de gênero. Acrescentar uma camada de interseccionalidade torna possível considerar classe, raça e religião, tendo assim em mente as várias outras convenções e classes sociais que se sobrepõem à desigualdade de gênero.
Bell hooks define o feminismo como um movimento para acabar com o sexismo, a exploração sexista e a opressão. Esta foi uma definição de feminismo que ela ofereceu em Feminist Theory: From Margin to Center há mais de 10 anos. Era sua esperança na época que se tornasse uma definição comum que todos usariam. Ela disse que gostou dessa definição porque não implicava que os homens fossem o inimigo. Ao nomear o sexismo como o problema, foi direto ao cerne da questão. Praticamente, é uma definição que implica que todo pensamento e ação sexista é o problema, seja quem o perpetua seja mulher ou homem, criança ou adulto.
Os homens não são o problema aqui, o Patriarcado é. Da mesma forma, se aplicado ao design de tipos, isso significaria que tipografias ‘neutras’ não são um problema, mas sim o seu uso, monopólio e “tipismo”. Acabar com a opressão do design não-neutro — isto é, dando-lhe mais espaço mutuamente respeitado nos canais principais e não apenas limitando-o a zonas experimentais inutilizáveis que promovem sua marginalização — seria um passo em direção a uma abordagem feminista ao design de tipos.
O Tipatriarcado se manifestou no design gráfico de forma tão invisível quanto o Patriarcado se estabeleceu no mundo físico. Segundo Sarah Ahmed, “o ponto de partida para a orientação é o ponto a partir do qual o mundo se desdobra: o ‘aqui’ do corpo e o ‘onde’ de sua morada”. Quando neutras, sem serifas são usadas para marcas esportivas ou marcas de luxo poderosas, elas exalam masculinidade. Eles comandam esse espaço poderoso e se orientam como centrais. Em seguida, vêm as embalagens de absorventes higiênicos macios e fluidos com seu imposto rosa e cores delicadas. A associação de certos tipos de letra a serem mais femininos, portanto impróprios para certos usos (mas mais do que adequados para um imposto rosa adicional), é um problema clássico de discriminação de gênero que vemos no mundo físico! Imagine um cartaz de protesto com uma tipografia que representa sua insistência apaixonada, ou um apelo à ação com uma tipografia que ecoa a emoção de sua mensagem. A falta de expressão e intencionalidade é talvez a maior perda com a qual o Tipatriarcado nos golpeia. Assim como as opiniões e perspectivas ausentes devido à falta de inclusão que o patriarcado nos condenou, entre outras coisas.
Nari Variable
Então, o que significa “ser feminista” para uma tipografia?
Em retrospecto, uma tipografia feminista deve ser capaz de acabar com a supremacia do tipo “neutro” enquanto dá mais poder e liberdade ao tipo expressionista/emotivo. Afastando-se dos princípios geométricos “aceitáveis” do design de letras, Nari Variable é um modelo do que uma tipografia feminista pode ser. Desenhada por uma mulher de cor, Nari Variable é tudo menos neutra e segura. Ela não é o tipo de sans serif convencionalmente construída e limpa que deveria se sentar quietinha e deixar a mensagem falar. Ela tem uma personalidade que é poética e revigorante. Ela é fluida por natureza em relação à sua variabilidade — ela não pertence a um único extremo e não pode ser definida por um único estilo. Ela paira entre os extremos, mas não se identifica com nenhum binário. Ela é humanista na construção, mas suas proporções agradam aos olhos. Ela é uma sem serifa com acabamento digno de uma serifada. Ela não atesta um gênero. Ela pode elevar, em mais de uma maneira. Ela lhe dá mais opções de expressão. Ela pode ser silenciosamente alta e gentilmente forte.
Na Índia, a nari (uma mulher) é frequentemente comparada a uma deusa. Uma deusa da força, que é capaz de assumir papéis variados, dependendo da tarefa que ela deve servir. Nari Variable é uma homenagem a essa força fluida que uma mulher possui. Ao citar essas mulheres que impulsionaram os movimentos feministas com ação e teoria, Nari se torna uma ferramenta para experimentar como um “outro” pode servir para transmitir uma mensagem feminista.
Nari também navega na ideia de que desenhar letras que não aderem às convenções geométricas universais não as torna menos poderosas ou menos utilizáveis. Como testemunho de seu uso, empreguei Nari em cartazes anti-Tipatriárquicos, zines feministas e cartões postais de confronto, entre outras coisas. Ela empresta uma voz poética e revigorante a esses micromovimentos, defendendo a mensagem que transmite. A variabilidade acolhe a escolha da expressão que sustenta a representação. Embora o conteúdo seja extremamente importante no design para a dissidência, minha experimentação com Nari abriu possibilidades interessantes para que o tipo seja mais inclusivo da própria mensagem. Como um experimento para ver como Nari pode ser usado por outros amigos no design gráfico. Obtendo resultados surpreendentes, esta foi uma tremenda oportunidade de ver as interpretações de Nari para capas de livros, pôsteres, capas de álbuns, entre outras coisas. Para citar Shoshana Schultz (uma das designers que fez um espécime para Nari), “Os valores inerentes a ela me fizeram sentir que estava tudo bem tentar algo mais suave e leve ao invés do que eu costumo fazer, que talvez seja mais duro. Usar a fonte me fez pensar sobre a minha socialização e as maneiras que eu costumo usar linguagem de design dura para compensar minhas qualidades femininas ou por medo de que eu possa reforçar os tropos femininos de ser suave, pequena, quieta — impotente — se esses tons aparecerem em meu design. Em outras palavras, usar a Nari me fez sentir afirmativa e bem, e me lembrou que há imensa força na delicadeza, intensidade na gentileza. Obrigado por isso”.
Essa tremenda experiência me dá esperança de que a Nari seja usada como um tipo de fonte display versátil, que maximiza a liberdade de expressão e diferentes interpretações. Espero que Nari possa servir de recurso nesse diálogo de movimentação de fontes não normativas da periferia para o interior do círculo de design. Isso acontece com frequência em movimentos culturais, como os tipos grotescos, que antes de se tornarem centrais para o design, emergiam nas bordas.
Quanto mais as pessoas usarem tipos não normativos para o design normativo, mais centrais elas se tornarão para o design.
Nari é uma dessas ofertas na esperança de se tornar o novo grotesco, de empurrar a marginalização para o centro.
Aasawari Suhas Kulkarni é uma designer, educadora e escritora indiana. Atualmente vivendo em Washington D.C, ela é professora assistente de design na Corcoran School of the Arts and Design da George Washington University, e coordena uma prática de design independente focada em desenho de tipos. (LinkedIn).
obrigada por ler até aqui! esse ensaio me emociona um pouco. no início do ano eu cheguei a trocar alguns e-mails com a Aasawari, sobre ser uma mulher interessada em tipografia no Sul Global, e contei a ela sobre a ideia da zine - foi aí que ela me permitiu usar a Nari, que ainda não foi oficialmente lançada. na minha prática cotidiana de design - no trabalho, na faculdade e até em projetos pessoais - muitas vezes me pego preocupada com os tropos de gênero que tenho medo de reforçar. me sinto até culpada às vezes, como se eu fosse a única responsável por essas associações e marcações de gênero - e portanto, como se eu sozinha precisasse tomar um atitude pra mudar. mas pessoas como a Aasawari me lembram que esse é um trabalho coletivo e, por mais lento que o processo seja, há muita gente se empenhando pela mudança. que tal compartilhar esse ensaio com mais pessoas e difundir a mensagem por aí?
muito bom, importante reconhecer os danos do patriarcado em diferentes niveis, so assim, iremos '' combater '' as injustiças que esse sistema provoca !!
Engraçado! Sempre olhei para as várias tipografias como feminina, mas pensando bem chega a fonte Arial e me desmente.