#39 o passado e a morte num mundo pós-ia
ou design, registro & memória parte 2 | tempo de leitura: 8 minutos
não é um dejá vù. em setembro do ano passado eu também escrevi sobre design, registro e memória, mas esse é um texto diferente. na época, falei sobre como novas tecnologias, em especial a captura 3D, apontavam para novas formas de lidar com o passado. mas, se na edição 8 eu falei sobre a memória de lugares, hoje minha inquietação tem a ver com a memória das pessoas. vamos?
⚠️ antes, um aviso: na semana que vem teremos uma recomendação de leitura de alguma outra publicação, e não uma nova edição. eu criei a makers com o objetivo de me manter lendo e escrevendo sobre design, então é justo que eu dê uma pausa nesse mês: estou envolvida em dois artigos acadêmicos e os prazos estão correndo. volto assim que a rotina estiver mais tranquila, e logo compartilho os artigos :)
🕰️ Como a evolução das formas de registro muda a nossa relação com o passado?
Em seu livro Design para um mundo complexo, Rafael Cardoso afirma com todas as letras que o dilema mais profundo da conservação-restauração é “a plena consciência de que o passado não se recupera”. Como sociedade, nós aceitamos a separação de artefatos entre móveis e imóveis, e confiamos em registros anteriores à nossa própria existência para conhecer o que chamamos de passado, sobretudo daquilo que consideramos imóvel, como os lugares, as construções e os monumentos.
Ao tentar conhecer o passado, o descrédito das pinturas é mais fácil de aceitar: nas aulas de história do colégio as professoras já nos alertavam que representações de momentos históricos não eram feitas ao vivo e muito menos com uma rigorosa fidelidade. Tem até a anedota de que Dom Pedro teve uma dor de barriga no dia da proclamação da Independência1, e ficava o alerta: não dá pra confiar nessas obras tão heroicas dos pintores.
As fotos foram consideradas mais confiáveis por um tempo. Embora técnicas de manipulação sejam quase tão antigas quanto a própria fotografia, havia um apelo de realidade nelas, na sua instantaneidade, sobretudo as fotos com caráter meio acidental, de flagrante. Apesar de parecer extremamente alarmante hoje, a geração de imagens falsas realistas por inteligência artificial não está gerando um debate inédito: o mesmo burburinho surgiu quando o Photoshop se popularizou. Eventualmente chegamos ao entendimento de que fotografias podem ser manipuladas, seja na pós-produção ou mesmo ao registrar cenas completamente montadas, como num filme. Assim como as pinturas, contamos com elas em algum nível para conhecer o passado, mas não as consideramos acima de qualquer suspeita.
Houve quem tentasse escapar das incertezas contando com os vídeos, mas esses também podiam ser completamente encenados. Mais recentemente, acompanhamos o surgimento dos filtros, que funcionam em vídeos e até em transmissões ao vivo. Conforme novas ferramentas foram surgindo, foi preciso repensar nossa relação com a verdade, com o registro e com o passado. Será que tal coisa realmente aconteceu? Tem foto? Tem vídeo? Isso é garantia de alguma coisa?
🏺O dilema da preservação
Uma forma de registro e representação mais recente2, mais complexa e de alguma forma mais promissora é o escaneamento 3D. Em um projeto de pesquisa na universidade tive contato direto com essa tecnologia. De longe, o aspecto mais ressaltado da ferramenta é sua capacidade de capturar e armazenar (no caso dos modelos gerados a partir dela) informações que uma representação bidimensional, como uma fotografia ou vídeo, não poderia. Não dá pra fazer truques de ângulo se seu registro for 360 graus, certo?
Um dos usos do escaneamento 3D que vem ganhando destaque é o registro histórico, que pretende ajudar em trabalhos de preservação da memória. Um exemplo é o escaneamento da Nakagin Tower, no Japão, de autoria do arquiteto Kisho Kurokawa. A construção é um marco do Movimento Metabolista e data dos anos 1970. Ela foi demolida no ano passado devido à deterioração de suas estruturas, mas o projeto 3D Digital Archive quer unir escaneamento 3D e dados de mais de 20 mil fotografias para preservar a obra em um ambiente de realidade virtual.
Até aí tudo bem, eu acho. Pessoalmente não consigo pensar em um lado negativo de poder registrar as coisas como elas são hoje de forma que possam ser acessadas longos anos depois de seu desaparecimento. Mas me causa desconforto quando essa proposta passa dos artefatos (os imóveis que Rafael Cardoso menciona) para… a vida. Ou melhor, a morte.
“Comece a gravar regularmente seus pais, parentes idosos e entes queridos. Com dados de transcrição suficientes, novas [ferramentas de] síntese de voz e modelos de vídeo, há 100% de chance de que eles vivam com você para sempre depois de deixar o corpo físico. Isso deve ser possível até o final do ano.”
Pratik Desai, dos projetos de IA generativa Cognify Studio (imagem) e KissanGPT (texto)
Esse tweet de Pratik Desai mexeu com muita gente ao insinuar que, com o avanço das tecnologias generativas, seria possível que entes queridos mortos “vivessem pra sempre” conosco. A ideia de que isso seja uma tecnologia acessível para qualquer pessoa me causa extremo mal estar. Algo como “espera, você nunca leu Frankenstein?”, ou, se você não leu Frankenstein (mas você definitivamente devia, é meu livro preferido), “espera, você nunca viu Black Mirror?”. Quer dizer, tem que ter um motivo pra várias pessoas estarem tentando nos alertar que a morte e a vida são domínios perigosos, cujo controle não cabe a nós.
👻 A vida após a morte, ou como morrer digitalmente
Na newsletter
a Le fala sobre narrativas. Algumas edições atrás, ela falou justamente sobre como a tecnologia já está reescrevendo a nossa relação com a morte. As redes sociais começaram o movimento:“O Facebook, o Instagram e o LinkedIn dão duas opções quando um usuário morre: deletar a conta completamente ou transforma-la em um memorial, onde parentes e amigos ainda podem prestar homenagens. No iPhone tem até como criar um testamento digital, dizendo quem você autoriza que acesse seus dados do iCloud e senhas depois da sua morte.”
E até que isso faz sentido. Nossa presença digital é uma espécie de registro e não morre quando nosso corpo morre. Em um ambiente digital que foi construído com bases em perfis, as redes sociais precisam sim pensar no que acontece com eles: de acordo com o Live Science, em 2070 o número de perfis de pessoas mortas pode ultrapassar o de pessoas vivas no Facebook. Ok, eu sei que o Facebook pode não durar tanto, mas essa é a vida: você nasce, cresce, cria perfis em redes sociais e um dia você morre.
E vai além disso: a mesma edição também menciona o avatar hiper-realista que foi anunciado após a morte de Pelé. Quando estiver pronto, o avatar “vai interagir com os 19 milhões de seguidores que o ex-jogador possui em seus perfis no Instagram e Twitter”. Enquanto isso, as redes de Pelé continuam ativas, postando vídeos de momentos marcantes no futebol e na vida maior jogador do mundo. É uma nova forma de ser eterno.
Como vamos nos relacionar com a morte no contexto das redes sociais, que registram cada vez mais sobre as nossas vidas, e das inteligências artificiais generativas, que agora tentam reescrever a morte?
Um dos capítulos da zine “Can tech rewrite its wrongs?”, da Backslash, se chama “How to die digitally” ou como morrer digitalmente. Quero fechar essa edição traduzindo algumas das proposições e suposições feitas na zine. E se…
…declarar seus desejos de [o que vai acontecer com sua] conta pós-morte fosse uma parte obrigatória de todo processo de inscrição - de serviços de armazenamento em nuvem a perfis de mídia social e carteiras de criptomoedas? Garantindo que a privacidade pós-morte nunca fosse uma reflexão tardia.
…você pudesse optar por doar seus dados médicos da mesma forma que opta por se tornar um doador de órgãos? Permitindo que as pessoas contribuam para pesquisas médicas valiosas muito depois de terem partido.
…nossos restos digitais fossem preservados da mesma forma que os documentos históricos? Dando às gerações futuras informações confiáveis3 e bem organizadas sobre como a história se desenrolou online.
…houvesse um cofre virtual que armazenasse todos os nossos produtos on-line - pontos de hotel, milhas aéreas, e-books, roupas digitais, capas de avatar, tokens de jogos etc. - facilitando o rastreamento e a transmissão de ativos digitais.
E aí, o que você acha?
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ufa, obrigada por ler até aqui :) talvez você tenha notado alguns trechos da edição 8, e é porque esse texto começou com um processo de reescrita e acabou virando outra coisa. não tentei esgotar o assunto, mas acho que foram reflexões interessantes, né? o que você acha? fique a vontade para responder esse e-mail se quiser conversar, compartilhar algo ou até mesmo criticar algum ponto da newsletter. espero que esse possa sempre ser um espaço de troca.
até a próxima terça!
- hele
Na verdade, foi Maria Leopoldina quem assinou o decreto da Independência do Brasil. Descobri na exposição Mulheres que mudaram 200 anos, na Caixa Cultural.
Recente em relação a pinturas, fotos e vídeos, no caso. Mas não é nova: as primeiras experiências com escaneamento 3D foram nos anos 1960.
Confiáveis, será? Hahaha é a tradução direta da zine, não vou me meter.
nossa, que desconforto imenso que senti no momento que você começou a falar de morte - o mesmo desconforto que senti quando vi O episódio de black mirror (e me senti muito influenciada a ler frankenstein, obrigada!). a ficção científica é profética mesmo, e os direitos da pessoa morta precisam ser revistos nessa realidade tecnológica cada vez mais distópica.
essa edição foi maravilhosa, parabéns! sucesso nos artigos
Na época que o Facebook era mais presente em nossa vida, lidei com o Memorial quando fiz o do meu pai. Ele começou a usar o Facebook (e outras) bem no fim da vida, já com 75+, dada a facilidade de usar o iPhone.
Mas antes disso, quase fiz um memorial para um primo meu, já que após o seu falecimento a irmã dele usava seu perfil e ainda interagia com outras pessoas. Acho que era uma forma dela elaborar o luto, mas me sentia mal. No fim das contas, não fiz nada.