#38 a culpa é do design: vício em redes sociais
a internet é horrível, e é por isso que você não consegue sair dela | tempo de leitura: 10 minutos
olá! essa edição surgiu da minha leitura atual: Falso Espelho, de Jia Tolentino. é uma coletânea de ensaios sobre sociedade, mas me surpreendi ao perceber como algumas das maiores questões da humanidade hoje podem ser facilmente associadas ao campo do design. na verdade, algumas só foram possibilitadas através dele. uma delas é o vício1 em smartphone e redes sociais. tem muitos, muitos pontos sobre isso, mas quero focar na parte que também é nossa responsabilidade. vamos?
📲 Celulares: projetados para serem viciantes
Você não precisou dessa edição pra descobrir isso: nós já sabemos que os celulares - e todos os aplicativos que dão vida a ele - são projetados para, de alguma forma, nos controlar. E nós caímos nessa todos os dias.
Há alguns anos eu vivo uma batalha comigo mesma em relação às redes sociais. Eu já tentei de tudo pra parar: limite de tempo nos apps, tirar notificações, deletar meus perfis, qualquer coisa parecida. É uma batalha que eu sei que é comum, ou que talvez eu só esteja desejando muito que seja comum: por favor, que eu não seja a única maluca viciada que tem tempo de tela próximo das 5 horas diárias. E ufa, eu não sou: essa é a média no Brasil (5,4 horas/dia) e no mundo também (4,8h/dia).
Há textos que culpam o TikTok por isso, mas parece mais ele está mais roubando o tempo de outros aplicativos do que efetivamente sendo o único culpado. Há textos que culpam a pandemia, mas houve países, como a Argentina e China, cujo tempo de tela diminuiu de 2020 para 2021. Dá pra perceber que não existe um fator único, e que a construção e a manutenção dessa relação de dependência vêm acontecendo há anos. Inclusive, tem um vídeo da Vox de 2018 (pré-pandemia, pré-explosão do TikTok) sobre o que exatamente no design dos celulares os torna tão viciantes.
São cores vibrantes, notificações não-humanas, feeds de rolagem infinita. Nenhuma dessas coisas, por si só, torna alguém “viciado”. Mas é todo um ecossistema: alguns desses dispositivos de design, agrupados, recebem o nome de frictionless design, ou design sem atrito. “Atrito” é a palavra guarda-chuva pra qualquer coisa que possa interromper o andamento de uma tarefa específica: assistir a um story, por exemplo, deve ser uma tarefa rápida e fácil de concluir: clicar e assistir; sem necessidade de fazer login todas as vezes, fechar um pop up que surgiu, etc.
O lema do design sem atrito pode ser “Não me faça pensar”, título do livro clássico de Steve Krug. Embora tenha sido publicado há mais de vinte anos, é considerado um cânone do design de experiência e usabilidade. A tese de Krug é que o esforço cognitivo do usuário deve ser mínimo para que sua experiência seja rápida, agradável e sem interrupções ou dificuldades desnecessárias.
Não está em discussão se remover o atrito das nossas experiências em smartphones a torna melhores: isso é um fato. Ninguém quer encontrar uma tarefa difícil e demorada quando está com fome e cansado e abre um aplicativo de delivery. Mas talvez valha a discussão: o quanto a ferramenta “manter-me logado” das redes sociais não nos leva a acessá-las mais vezes? Será que a gente assistiria tantos tiktoks (ou reels) se tivéssemos que escolher quais vídeos assistir, ao invés de só rolar o feed infinitamente?
A remoção de qualquer “obstáculo” ou passo extra pelo design pode ter criado experiências que consideramos muito agradáveis, sim, e temos vontade de repetir. Mas ela também pode ser um dos passos para criar “hábitos” nos usuários - uma ideia que flerta com a dependência.
💩 A internet é horrível (e é por isso que você não consegue sair dela)
Eu comecei a rascunhar esse texto depois de ler o ensaio O eu na internet, da Jia Tolentino, publicado no livro Falso Espelho. Mais especificamente, esse trecho aqui, onde ela explica que nossa atenção foi sequestrada por
“feeds de redes sociais — infinitamente variados, mas, por alguma razão, monótonos. (…) Como muitos críticos observaram, quando estamos diante de nossa timeline, exibimos o clássico comportamento de ratos de laboratório em busca de recompensas, do tipo observado quando se coloca um desses roedores na frente de um dispenser de comida imprevisível. (…) Em outras palavras, é essencial que as redes sociais sejam, na maior parte do tempo, insatisfatórias. É isso que nos mantém passando, passando, pressionando nossa alavanca repetidas vezes, na esperança de sentirmos algo fugaz, algum ímpeto momentâneo de reconhecimento, bajulação ou raiva.”
O vício em redes sociais não é moldado apenas pelo design de interfaces, mas também pela arquitetura e pelo funcionamento dos produtos digitais. Enquanto o ensaio de Jia foca muito mais na questão da identidade na internet, em como nós estamos constantemente representando um papel para o nosso “público” online, ela aponta que é a necessidade de manutenção dessa identidade que nos mantêm online; e que essa relação entre eu, representação e dependência tem tudo a ver com a forma como a internet é projetada:
“É incrível pensar que coisas como o design de uma hashtag — esses experimentos de arquitetura digital com uma função muito clara — moldaram de forma crucial nosso discurso político. Nosso mundo seria diferente se a maioria dos usuários do 4chan não se identificasse como “Anônimo”, ou se todas as redes sociais não fossem centradas nos perfis dos usuários, ou se os algoritmos do YouTube não mostrassem vídeos cada vez mais extremos para chamar a atenção dos espectadores, ou se hashtags e retuítes simplesmente não existissem. É por causa da hashtag, do retuíte e do perfil que a solidariedade na internet se entrelaça de forma inseparável com a visibilidade, a identidade e a autopromoção.”
🎲 O jogo é viciado: quem ganha com isso?
Então esse é o cenário: o design das redes é propositalmente viciante, e há uma distorção da nossa noção de identidade, na qual o “eu” se torna uma mera representação virtual, vazia, mas ao mesmo tempo extremamente importante para as relações sociais.
Esses dois fatores juntos nos colocam em uma posição complexa: é fácil sentir que nossa existência é definida por aquilo que postamos e fazemos online. Conscientes ou não, estamos inseridos no sistema, e não é exatamente culpa de ninguém de forma individual. Sabemos que quem escolhe simplesmente sair das redes sociais está abrindo mão de uma parcela de sua vida social e às vezes até de oportunidades profissionais. Fomos convencidos de que quem não é visto não é lembrado, né?
Mas eu acho que tem um outro fator, que é a esperança de que, se você agir da forma certa, a internet vai te recompensar: com elogios, likes, seguidores, inscritos - milhares deles. Afinal, quanta coisa não viraliza do nada, né? Olha aí o Xurrasco. Só que… não exatamente.
Em uma edição recente - “Isso não vai acabar nada bem” - da newsletter da Aline Valek,
, ela escreve:“Selinhos de verificados, perfis que alcançam centenas de milhares de seguidores em poucos meses, posts que chegam a milhões de views: a gente vê o tempo inteiro gente desfilando por aí com esses "grandes prêmios", o que faz o resto de nós pensar que é um lugar alcançável, que também podemos chegar lá. Mas esse jogo também é viciado. As plataformas conseguem manipular seus mecanismos para fabricar esses grandes vencedores, que vão "inspirar" outros a seguirem o mesmo caminho, a produzirem conteúdo usando as mesmas fórmulas, a movimentarem esse iluminado e extasiante parque de diversões.
Mas quem ganha, como sempre, são os donos do jogo. Que passam a ter multidões tentando a sorte para se tornar celebridades dentro de suas plataformas, dedicando tempo, dinheiro, atenção e esforços nesses joguinhos de azar. Passam então a trabalhar perseguindo um algoritmo que muda de direção arbitrariamente de tempos em tempos, sem nunca alcançar o prometido sucesso, como se fossem funcionárias de um patrão que não revela nunca por quais critérios está avaliando a performance de seus trabalhos.”
Nesse trecho, Aline está fazendo referência a uma história que saiu em janeiro desse ano, do “heating button” do TikTok: uma ferramenta que permite que funcionários da plataforma manualmente escolham vídeos que vão viralizar. Sim, arbitrariamente. E enquanto é meio chocante que o TikTok confirmou a existência de tal ferramenta, não existe absolutamente nada que prove que o mesmo não acontece no Twitter, no Instagram, no Facebook ou em qualquer outra rede, porque nenhuma delas é transparente sobre seu algoritmo.
🪝 Hooked: o método para criar produtos viciantes
No livro Hooked (Engajado): Como construir produtos e serviços formadores de hábitos, Nir Eyal apresenta um passo a passo de… bom, você já sabe, é o subtítulo do livro. O seu método consiste (e de certa forma, legitima), basicamente, nas ferramentas que já foram apresentadas nessa edição: Gatilho, Ação, Recompensa Variável e Investimento.
O gatilho pode ser emocional, mas também pode ser externo, como uma notificação enviada pela própria rede social (mesmo que não aja uma ação humana ainda). Os gatilhos devem levar o usuário a uma ação, e aqui é importante projetar essa ação de forma que ela seja o mais sem atrito possível. A ação leva a uma recompensa variável, tal como Jia Tolentino e Aline Valek descreveram em seus ensaios. E, em busca dessa recompensa, que se beneficia de sua aleatoriedade, o usuário vai investir tempo, esforço e recursos em um produto (nesse caso, o app ou rede social) ao longo do tempo. Quanto mais recursos ele investir, maior a probabilidade de seu uso se prolongar.
É claro que fazer isso não é tão simples: se fosse, muito mais gente estaria aplicando o modelo com sucesso. Quem negaria uma oportunidade dessas, de ficar milionário criando a próxima rede social viciante? Além disso, o método é eticamente discutível: será que devemos criar produtos que viciam? Será que “criar um hábito” não pode ser perigoso para usuários mais vulneráveis à dependência?
De um jeito ou de outro, Hooked é um livro interessante porque entender como essas dinâmicas se concretizam é essencial para lidar com elas, tanto num nível pessoal como coletivamente. A questão talvez seja que a angústia que sentimos em relação à internet muitas vezes tem um tom muito pessoal, muito individualista, como se todo mundo fosse bem resolvido e a culpa fosse nossa: é só apagar o aplicativo do celular, não é? Não é? Se não é assim que funciona, como podemos pensar sobre as redes sociais enquanto comunidade?
💌 zine nova para apoiadores!!
Depois de quase um mês de desenvolvimento, a zine que vira poster baseada na edição #30 𝓂𝓊𝓁𝒽𝑒𝓇, não: mulher está pronta! Essa semana mesmo já vou buscar elas na gráfica, finalizar a montagem e fazer os envios para os apoiadores.
Contribua através do apoia.se e receba de presente as duas zines da makers gonna make; mas corre, porque a primeira está acabando e não vai voltar! Além disso, apoiadores recebem um e-mail extra mensal com todas as referências incríveis que ficaram de fora das edições regulares. Tá tudo bem explicadinho por lá. E se você estiver se sentindo especialmente generoso, me dê um livro de presente :)
obrigada por ler até aqui! a edição de hoje foi mais longa que o normal, e eu não espero, de forma alguma, esgotar esse tema. fique a vontade para responder esse e-mail se quiser conversar, compartilhar algo ou até mesmo criticar algum ponto da newsletter. espero que esse possa sempre ser um espaço de troca.
até a próxima terça!
- hele
Escrevendo essa edição, pensei muito sobre o uso dessa palavra. Será que é proporcional utilizar “vício” para descrever o fenômeno? Será que isso não diminui, de alguma forma, a seriedade com que encaramos a dependência química? Sei que casos de vício real em dispositivos eletrônicos e redes sociais já foram reportados pela imprensa, mas, nessa edição, o uso da expressão deve ser visto mais como uma expressão figurativa para descrever nossa relação conturbada com a tecnologia.