#94 universidade: função vs. valor
vamos parar de pensar "pra que isso serve?" antes que eu fique maluca | tempo de leitura: 8 minutos
oie! seja bem-vinde a mais uma edição da makers :) eu sou hele carmona, jornalista, designer e artista multimídia. no mês passado eu oficialmente concluí minha graduação em design. entre conversas com amigos e textos de agradecimento, me peguei refletindo sobre o quanto o espaço universitário é importante e muito, muito caro pra mim. sei que o anti-intelectualismo está em alta há alguns anos, mas eu não me aguento: eu amo estudar. enquanto é possível e muitíssimo desejável que se aprenda também fora da universidade, essa edição reúne alguns pensamentos sobre a importância de zelar por esse lugar, mesmo diante de uma frustração geral com a academia. vamos?
Uma crise de credibilidade
Quando eu era criança, ouvi muito dos adultos ao meu redor que a educação mudava a vida das pessoas; que os estudos me garantiriam uma vida confortável pra sempre. Sei que as crianças de hoje não escutam o mesmo. A universidade enquanto instituição vem sofrendo golpe atrás de golpe, incluindo mentiras e ataques de motivação política, altos e baixos orçamentários (mais baixos do que altos) e uma crise de credibilidade global. Num cenário de crescente precarização do trabalho, “a própria formação (incluindo a educação) começa a parecer uma farsa, visto que, por si só, não é suficiente para cumprir as promessas de realização profissional e de relativo bem-estar”1.
No final do ano passado, uma matéria no G1 denunciou um esquema que envolvia “influencers mirins” minimizando o valor da educação formal e ostentando uma suposta vida de luxo... conquistada com a venda de cursos como afiliado. “Qual faculdade você pensa em fazer no futuro? Faculdade? Eu já ganho mais que 5 médicos no mês”, declarou uma das crianças em vídeo.
Ainda tem a sempre crescente lista de pessoas muito bem sucedidas que abandonaram a faculdade, cuja narrativa com frequência ignora todos os outros fatores biográficos e socioeconômicos envolvidos nas tais histórias de sucesso; isso sem mencionar que daria muito mais trabalho fazer a lista de unsuccessful college dropouts.
Função vs. Valor
Eu tenho experimentado com vídeos no TikTok e há um tempo recebi comentários que diziam: “mostra mais dos seus processos! (…) Eu amaria saber mais como vc une o digital (indesign) com o fisico. Metodos de impressao e tecnicas de impressao, dicas de software e de impressao e etc :)) tenho duvidas principalmente tipo como separar a parte q vc quer hotstamping pra botar sabe? minha facul de design é bem teorica e sinto falta dessa parte pratica!”
Fico um pouco constrangida de responder esse tipo de comentário com a minha opinião de verdade: como aplicar hotstamping num arquivo é algo que qualquer um pode perguntar pro atendente da gráfica, esquecer e perguntar (e esquecer) outra vez quando for preciso. Então me parece ótimo que a faculdade de Design seja “bem teórica” e ensine outra coisas, assuntos que demandam meses e até anos pensando sobre pra que façam algum sentido.
Entendo que essa sensação é, em si mesma, uma barreira pra que a universidade seja valorizada: nem sempre o que encontramos por lá faz sentido na hora em que é apresentado. Ninguém vai entender tudo logo de cara porque algumas coisas são mesmo difíceis e desafiadoras, e assimilar essas coisas é mais importante justamente porque não é em todo ambiente que temos a oportunidade de aprender de forma aprofundada. Eu não estou negando que uma parcela da universidade realmente esteja inadequada ou defasada, mas uma coisa não anula a outra (e me parece inadequado me referir a todo um conjunto diverso e complexo de instituições como uma massa genérica, mas faço isso para fins de compreensão e também porque e-mails tem limite de tamanho).
Quando escuto colegas de área dizendo que a faculdade “não se atualiza”, me pergunto o que é que eles fazem na faculdade; porque eu estudei, escrevi e produzi teoria, e conheci pessoas que fazem o mesmo, lendo e citando estudiosos do tempo presente2. Se você não consegue fazer mais do que assistir às aulas passivamente e acredita que o conhecimento é algo estático que está ali, pairando tal qual uma foto no icloud pronta pra ser acessada, sei lá, eu não sei o que te dizer.
Outra reclamação, que tangencia a suposta desatualização da universidade, é sobre a desconexão entre as instituições de ensino superior e o mercado de trabalho. Primeiro que isso nem é verdade: sobretudo nas faculdades particulares, o que mais existe é o discurso de “formação alinhada com o mercado”. Mas tomando essa suposta desconexão como verdade, acho que se frustrar com isso é meio míope. Do jeito que eu vejo, a universidade é uma oportunidade de trabalhar em projetos fora (pelo menos um pouco) da lógica de mercado. Ela é um espaço alternativo, e por um motivo: se ela não existir, tudo vai ser só mercado. Um TCC pode ser a oportunidade de desenvolver um projeto pessoal longo, que signifique algo pra você, com orientação e tempo dedicado. Isso não se encontra em um emprego.
A maior injustiça, que permeia todos esses pontos, é aplicar à universidade a visão utilitarista de que ela só é boa se servir ao mercado ou, mesmo quando servir ao aprendizado, que esse aprendizado deve servir ao mercado também. A universidade não é só o lugar de aprender uma profissão, é um lugar de conhecer pessoas, de construir comunidade, de pensar e questionar os próprios interesses e vontades. É um lugar de estar em contato com visões completamente diferentes da sua.
A Universidade não vai melhorar se estiver esvaziada
Dito tudo isso, eu sei que a universidade não é um ambiente ótimo. Durante as minhas duas graduações passei por situações constrangedoras de misoginia e presenciei outras piores, de racismo e transfobia contra colegas. Mas é justo dizer que essa é uma questão da universidade? Na academia (no caso, a smartfit, não a academia academia, que coincidência infeliz de palavras), em situações de trabalho, às vezes na minha vida familiar: eu nunca não passei por misoginia. A universidade é excludente porque envolve poder e status, e ela não vai se tornar melhor enquanto não for ocupada por pessoas cada vez mais diversas e interessadas em subverter as estruturas.
Na minha colação de grau, pude ouvir colegas brilhantes expressando sua felicidade por estarem se formando em turmas racial e sexualmente diversas, onde se sentiram acolhidos e pertencentes. Durante a cerimônia, a atual diretora da Esdi, Zoy Anastassakis, disse que a escola está no processo de implementar cotas raciais para professores (como um plano piloto, já que é um campus pequeno dentro da Uerj). A universidade não é uma instituição parada no tempo. Ela pode ser lenta, mas não podemos ignorar os esforços de quem a constrói e de quem passa por ela mesmo com todas as dificuldades.
Qualquer pessoa que lê essa newsletter com frequência sabe que eu acredito muito no estudo e na curiosidade como uma forma de viver a vida, e não uma tarefa que se cumpre em um determinado lugar e horário. Mas a universidade é o lugar e o horário em que eu não estou sozinha. Sendo assim, essa edição não é, de forma alguma, uma diminuição de qualquer pessoa que não teve a oportunidade ou que realmente não vê sentido numa formação superior no momento. É só uma expressão da minha gratidão. A cada período, com todas as reclamações que podem ser feitas, na Esdi eu aprendi a desenvolver de tudo, eu me aproximei de professores que se tornaram guias, eu fiz amigas, eu fui forçada a rever conceitos que tinha sobre mim mesma e sobre a minha prática de criatividade.
Acho que acabei divagando, mas não quero editar esse texto. Acho que ele merece ir ao mundo como saiu da minha cabeça. Por fim, se você tem interesse em ingressar na Esdi/Uerj e gostaria de conversar sobre o vestibular, as aulas e etc, fique a vontade pra falar comigo :)
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Desde 2022 eu escrevo e publico ensaios sobre design, criatividade, cultura e trabalho. Criei a makers porque ela é a newsletter que eu gostaria de ler: uma publicação que fala sobre design de forma descomplicada, mas não simplista. Prezo muito pela confiabilidade das informações que publico e sou eu quem pesquisa, escreve e edita cada texto. Já são mais de 80 edições gratuitas enviadas para +3 mil pessoas, além de zines e impressos autorais.
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obrigada por ler até aqui! essa edição não foi muito revisada porque pra mim esse é um tema emocional. mas se fosse só isso, eu não publicaria. acho que é uma discussão que a área criativa precisa ter de forma coletiva. fique a vontade para responder esse e-mail se quiser conversar, compartilhar algo ou até mesmo criticar algum ponto da newsletter. espero que esse possa sempre ser um espaço de troca. até a próxima terça!
Silvio Lorusso em Emprecariado (Clube do Livro do Design, 2023), p. 63.
Há algum tempo minha irmã, historiadora-to-be, me explicou que além de “história contemporânea” existe o termo “história do tempo presente”, e me soou melhor.
Pode parecer clichê, mas é basicamente a classe dominante fazendo o movimento de invalidar a universidade, a educação e o aprendizado. Não há esse interesse deles de que nós consigamos ascender ou de fato aprender pelo simples fato de que educação é compreensão, é luz do que acontece no mundo. A universidade é um perigo real pro "império" e por isso nos últimos anos essa tentativa de rebaixar a educação a algo desnecessário se tornou tão grande.
eu não atuo na minha área de formação mas é inegável o quanto ter passado pela experiência faculdade agregou no meu desenvolvimento social, intelectual, entre outros. é uma conquista, sim. sempre será. afinal, muitos de nossos pais sonharam com essa experiência e conseguiram realizar através da experiência dos seus filhos.