#91 verbalizar o design é outro ato de design
e eu não estou falando só de textos acadêmicos :) | tempo de leitura: 11 minutos
oie! seja bem-vinde a mais uma edição da makers :) eu sou hele carmona, jornalista, designer e artista multimídia. eu já falei sobre design e escrita em várias edições da newsletter, mas fiquei devendo um ponto específico: designers devem escrever, mas escrever o quê? artigos acadêmicos? certamente eles não são a opção mais atraente (e por sorte, não são a única!!). que gêneros textuais e estilos de linguagem são mais amigáveis pra quem está começando a escrever e por quê? nessa edição eu compartilho um pouco da minha pesquisa sobre o assunto. vamos?
💬 O entrave da linguagem
No ensaio A língua, publicado na coletânea Ensinando a Transgredir, bell hooks discute a dicotomia entre o inglês padrão utilizado no ambiente acadêmico e os dialetos de comunidades marginalizadas. Empregar o inglês padrão é uma espécie de chancela para “atingir um público mais amplo” ao falar em ambientes acadêmicos e “predominantemente brancos”; e no entanto, sua utilização sufoca outras formas de se expressar que podem ser mais intuitivas e precisas para seus falantes. Isso pode acontecer de forma inconsciente:
"Nos círculos acadêmicos, tanto na esfera do ensino quanto na da produção de textos, pouco esforço foi feito para utilizar o vernáculo dos negros — ou, aliás, qualquer outra língua que não o inglês padrão. Quando, num curso que estava dando sobre escritoras negras, perguntei a um grupo etnicamente diversificado de alunos por que só ouvíamos o inglês padrão na sala de aula, eles ficaram sem palavras por um instante. Embora para muitos deles o inglês padrão fosse a segunda ou a terceira língua, simplesmente não lhes havia ocorrido que era possível dizer algo em outra língua, de outra maneira. Não admira, portanto, que continuemos pensando: “Esta é a língua do opressor, mas preciso dela para falar com você.”
Essa questão se relaciona com um dos principais desafios para produção teórica no campo do design. A linguagem acadêmica não é, para a maioria dos designers e estudantes de design, a forma preferida de expressão. Ainda que em sua prática de design individual eles formulem opiniões, hipóteses e teorias, há a crença de que seu pensamento não é suficientemente refinado e técnico. E talvez realmente não seja adequado à academia — o que não quer dizer, de forma alguma, que não tem validade enquanto produção de conhecimento.
A escrita enquanto elaboração de pensamento ainda é útil e importante para uma prática crítica do design, ainda que contemple outros gêneros textuais, de diários pessoais a ensaios.
Pausa para os comerciais :)
Está oficialmente aberto o hele studio, meu estúdio de design com foco em conteúdo e design de impressos. Já estou marcando projetos pra iniciar no mês que vem, em junho. Se você quer trabalhar comigo, o ideal é me chamar agora! No hele studio, eu trabalho com:
Identidade visual para marcas ou projetos, como newsletters, produtos ou campanhas;
Impressos em geral (minha especialidade, hehe): revistas, livros, embalagens, etc;
Consultoria para projetos editoriais: apoio estratégico pra pensar financiamento coletivo, divulgação e formatos pra livros, zines, newsletters e afins.
É só me escrever em contato@helecarmona.com com a sua ideia :)
📝 O que é uma “linguagem acadêmica”?
De acordo com Andréa Kochhann em A produção acadêmica e a construção do conhecimento científico: concepções, sentidos e construções, um texto redigido em linguagem acadêmica não apresenta linguagem floreada, gírias, elementos coloquiais ou incorreções gramaticais; não apresenta termos como eu acho, penso que, acredito que, na minha visão, etc; evita ao máximo a subjetividade; e segue imprescindivelmente a ABNT ou outra norma, a depender da área de pesquisa.
Essas características tornam a escrita bastante desafiadora, uma vez que ninguém elabora hipóteses em pensamento automaticamente formatadas de acordo com a ABNT. A rejeição da subjetividade se choca com o próprio processo cognitivo de percepção e conhecimento do mundo, que é inerentemente subjetivo. Embora a escrita acadêmica tenha suas vantagens específicas e seu valor (sobretudo no que diz respeito à confiabilidade e verificabilidade das informações), ela não é a forma mais intuitiva para a expressão e elaboração do pensamento. Por isso, pode não ser o método mais adequado para designers e outros criativos que ainda não escrevem regularmente.
📓 Diários e ensaios
"Verbalizar o design é outro ato de design. (...) Suponha que haja um copo aqui. Você pode saber sobre um copo. Mas e se você tiver que projetar um? No momento em que um copo é proposto como um objeto a ser projetado, você começa a pensar sobre que tipo de copo deseja projetar e perde um pouco da sua compreensão de "copo". Diante de vários copos de diferentes profundidades, de "copo" a "tigela", e se for solicitado a esclarecer a exata linha divisória entre um e outro? Diante dos objetos, você fica perdido. E novamente, você fica um pouco menos seguro do seu conhecimento sobre um copo. No entanto, isso não significa que seu conhecimento foi derrubado. Na verdade, é exatamente o oposto. Você se torna mais consciente dos copos do que antes, quando os entendia simplesmente chamando-os inconscientemente de "copo". Agora você realmente entende os copos de forma mais realista."
Kenya Hara em Designing Design
Se o objetivo é começar ou consolidar uma prática de escrita com o objetivo de desenvolver uma abordagem mais crítica da criatividade, a escrita reflexiva (na forma de diários) e o ensaio são bem mais adequados do que a linguagem acadêmica.
Em Inspiring Writing in Art and Design – Taking a Line for a Write, Pat Francis sugere a prática da escrita por estudantes de Artes e Design através de um método chamado Reflective Learning Journal, ou diário reflexivo de aprendizado. Essa é uma prática pessoal de escrita e, embora o que se escreve possa ser publicado eventualmente, o objetivo principal é promover a reflexão pela organização de pensamentos soltos, seja durante a prática de design ou depois dela em forma de avaliação do processo. Francis escreve:
"Reflexão durante a ação e sobre como e o que você está trabalhando ajuda a jornada a progredir e encoraja a exploração de rotas alternativas que podem ser tentadas. Reflexão após a ação, explicando (para si mesmo e para os outros) através da escrita, escrevendo em diferentes vozes e considerando uma variedade de perspectivas e pontos de vista, são os principais componentes da reflexão secundária. Isso nos permite aprender com o passado e desenvolver habilidades e técnicas que utilizamos no futuro. Escrever como uma forma de cristalizar pensamentos é a tentativa de tornar físicas as ideias aleatórias em nossa mente. Praticar a captura desses pensamentos fugazes é o que nos ajuda a crescer como pessoas e profissionais."

A escrita reflexiva se dá a partir de três estágios mais ou menos sequenciais (Francis reforça ao longo de toda a sua obra que nenhum dos métodos apresentados deve ser compreendido como um esquema inflexível, mas orientar a prática pessoal, que pode ter particularidades de acordo com as preferências daquele que escreve). O primeiro estágio é definido pelas palavras-chave “explorar, experimentar e avaliar”; o segundo, “definir, desenvolver e detalhar”; e o terceiro e último, “personalizar, profissionalizar e polir”.
Eu acho muito interessante que os estágios da escrita reflexiva de Pat Francis são compostos de verbos tradicionalmente empregados em métodos clássicos de design. Isso reforça a tese da autora de que as similaridades entre design e escrita podem ser aproveitadas mutuamente, de forma que o conhecimento em design contribua para a escrita e a prática da escrita contribua para a prática do design. Alguns métodos que se aproximam dos estágios do diário reflexivo de aprendizado são:
Metodologia Projetual de Gui Bonsiepe: (1) Problematização, (2) Análise, (3) Definição do Problema, (4) Anteprojeto/Geração de Alternativas e (5) Projeto
Metodologia de Lobach: (1) Definição e Análise do problema, (2) Geração de alternativas, (3) Avaliação das alternativas e (4) Realização e avaliação da Solução
Duplo Diamante: (1) Descoberta, (2) Definição, (3) Desenvolvimento e (4) Entrega
Como o nome sugere, o objetivo de manter um diário reflexivo de aprendizado é utilizar a escrita como uma forma de organização dos pensamentos e aprendizados ao longo do processo de criação, seja nas artes ou no design. Mais especificamente, que
"desde os estágios iniciais do curso, os estudantes registrem seus processos de pensamento, desenvolvam habilidades de análise desses processos e os vinculem à variedade de influências e assuntos apresentados, desenvolvendo assim habilidades de contextualização. O diário incentiva a prática da articulação através da escrita, começando com seus sentimentos sobre o material pesquisado, explorando recursos primários e secundários, e respondendo a conselhos de tutores e colegas."
A principal vantagem dessa prática é que ela não compartilha com a escrita acadêmica a pressão formal e nem as exigências técnicas. Ela é mais convidativa para escritores iniciantes, já que gramática e estrutura são menos importantes do que o conteúdo. Mas Pat nos lembra: “outro propósito do diário é proporcionar prática na escrita e, portanto, à medida que o diário progride, devem surgir melhorias no vocabulário e na estrutura”.
Já o ensaio pode ser considerado um desdobramento da escrita reflexiva. Podemos entender esse é um gênero apropriado ao desenvolvimento do pensamento crítico a partir de O ensaio como forma, de Adorno. Ele se encontra fora da antítese entre arte (tida como irracional) e ciência (tida como completamente racional); não tem a pretensão de dar conta de tudo, de esgotar o assunto de que trata ou de chegar a uma verdade absoluta. Adorno escreve que
"O ensaio não segue as regras do jogo da ciência e da teoria organizadas, segundo as quais, como diz a formulação de Spinoza, a ordem das coisas seria o mesmo que a ordem das ideias. Como a ordem dos conceitos, uma ordem sem lacunas, não equivale ao que existe, o ensaio não almeja uma construção fechada, dedutiva ou indutiva. Ele se revolta sobretudo contra a doutrina, arraigada desde Platão, segundo a qual o mutável e o efêmero não seriam dignos da filosofia."
A afinidade com o transitório e o efêmero aproxima o gênero ensaístico da estrutura do pensamento humano (as “ideias aleatórias” mencionadas por Francis), tornando o processo de escrita mais intuitivo, sem que isso se oponha ao aprofundamento das ideias. Para Max Bense, citado por Adorno,
"Escreve ensaisticamente quem compõe experimentando; quem vira e revira o seu objeto, quem o questiona e o apalpa, quem o prova e o submete à reflexão; quem o ataca de diversos lados e reúne no olhar de seu espírito aquilo que vê, pondo em palavras o que o objeto permite vislumbrar sob as condições geradas pelo ato de escrever.”
A visão de Bense nesse trecho tem tudo a ver com a citação que dá título a essa edição, do designer Kenya Hara. A escrita e o desafio de enunciar o que se pensa sobre um objeto nos leva a explorá-lo de maneira mais minuciosa e expande nossa compreensão a respeito dele: “verbalizar o design é outro ato de design” :)
💌 Gosta da makers? Seja um apoiador :)
Desde 2022 eu escrevo e publico sobre design, criatividade, cultura e trabalho. Criei a makers gonna make porque ela é a newsletter que eu gostaria de ler: uma publicação que fala de temas relevantes para profissionais e estudantes da área, mas de forma descomplicada o suficiente para que qualquer um possa aproveitar. Prezo muito pela confiabilidade das informações que publico e não gosto de listas com muitos links; isso já tem demais na internet.
Essa é uma newsletter de uma mulher só. Isso quer dizer que sou eu quem pesquisa, escreve e edita cada texto. Cada edição é feita à mão (às vezes com caneta e papel) e chega na caixa de entrada de mais de 3 mil pessoas. Já são mais de 80 textos publicados gratuitamente, além de quatro zines derivadas das edições mais queridas dos leitores.
Com esse financiamento, você me ajuda a manter a newsletter ativa e explorar novas possibilidades :) Então se você gosta do meu trabalho, considere mudar sua assinatura para a versão paga:
O que eu faço
Newsletter gratuita, a cada 15 dias
Um texto inédito direto no seu e-mail com temas como design, processos criativos, cultura e trabalho.
Edição extra para apoiadores
1 vez por mês, um conteúdo exclusivo (às vezes até mais pessoal e opinativo) com bastidores dos meus projetos, experimentações e ideias em andamento.
Zines, pôsteres e outros materiais impressos
Sempre que possível, edito os textos da newsletter ou crio materiais inéditos para virarem publicações físicas. A meta é lançar pelo menos uma a cada três meses. E apoiadores tem 30% de desconto!
Pra onde vai o seu apoio
Tempo para pesquisa, escrita e edição dos conteúdos
Custos com domínio, hospedagem e ferramentas de envio
Impressão e envio de materiais impressos autorais
Testes em novos formatos, como vídeo ou podcast
O que você ganha
Um e-mail extra mensal
30% de desconto nos impressos da Hele Press :)
Quanto custa apoiar
R$15/mês no plano mensal ou R$12,50/mês no plano anual (R$150).
Dúvidas?
Como migrar para a versão paga
Se você ainda não assina a makers gonna make
• Acesse makersgonnamake.substack.com pelo navegador e preencha com o seu email; escolha o melhor plano pra você na página com as opções de assinatura pagas e gratuita.
Se você já é assinante gratuito
• Acesse makersgonnamake.substack.com pelo navegador e faça login em seu perfil no Substack. No canto superior direito você verá a opção “upgrade to paid subscription”. Clique nele e escolha o melhor plano pra você na página com as opções de assinatura pagas.
Gerencie sua assinatura
• Para assinar a versão paga, cancelar sua assinatura ou mudar de plano, você deve acessar o link makersgonnamake.substack.com/account.
ufa, obrigada por ler até aqui! essa edição é fruto direto de um capítulo do meu tcc, e por isso é mais densa de citações e teoria (um pouco irônico, haha). mas nem todo texto precisa ser. e você, o que acha? fique a vontade para responder esse e-mail! e se você acha que alguém que você conhece gostaria dessa edição, compartilhe:
Uma das coisas que sempre fica depois de ler as suas edições é "até que ponto escrever também não é design"? Não é, sempre, design gráfico, mas é design na medida em que podemos pensar na existência de design de atitudes e comportamentos, design de jogos, e design de experiências de aprendizagem. A maneira como a pessoa autora se aproxima do texto tem os mesmos objetivos que o de qualquer design, provocar reações (emocionais, cognitivas e comportamentais), porém através de outros tipos de referenciais e ferramentas. Dessa forma, a transição da vivência do ofício em um design para um outro tipo de design seria sempre válido como forma de pensamento e ressignificação, fosse ela texto, música, ou mesmo pedagógica, justamente pelo esforço de tentar explicitar o conhecimento tácito num processo de tradução. Um exercício inverso que seria interessante, seguindo essa linha, seria pedir aos designers de texto (i.e. escritoras) para usar o design gráfico para refletir sobre suas próprias práticas. Daria até um livro: desenhos sobre a escrita. :-D
acho que essa foi uma edição favorita da makers até agora...sensacional, hele! <3
e preciso dizer o tanto que amo ensaios, já que, pra mim, eles são o nascimento de uma escrita subjetiva mas pautada na pesquisa e no embasamento, quase em um relacionamento contraditório. acho lindo! e por mais que eu seja estudante de jornalismo, então entenda a necessidade da "objetividade" nesse campo, essa noção é extremamente vulnerável e falsa. afinal, uma simples escolha de tema é subjetivo, já tem uma explicação em quem escreve. enfim, sou uma grande admiradora devota da subjetividade!