#86 junk journals, memória gráfica e hobbies performáticos
sabia que colecionar lixo contribui com a construção da memória gráfica do país? | tempo de leitura: 8 minutos
oie! seja bem-vinde a mais uma edição da makers :) eu sou hele carmona, jornalista, designer e artista multimídia. nessa edição quero falar sobre algo que vem acontecendo há alguns anos: pessoas estão colecionando lixo. sim, colecionar lixo é um hobby relativamente popular e, por mais inusitado e sem propósito que pareça, tem uma ligação direta com a construção da memória gráfica. então hoje pretendo cobrir alguns tópicos: o que é um junk journal, qual a sua relação com memória gráfica e como as redes sociais ameaçam essa relação. vamos?
✂️ O que é um junk journal?
O termo junk journal pode ser traduzido como “diário de lixo” ou “diário de sucata”. Junk pode significar lixo, coisas descartáveis ou descartadas, mas também tem uma conotação de porcaria, besteira. Coisas “inúteis”. Essa é a proposta: juntar num caderno artefatos (principalmente impressos) efêmeros, descartáveis, como ingressos que já foram usados, tickets de transporte público, embalagens de comida e bebida e etc, como forma de registro pessoal. Se buscarmos uma definição oficial, trata-se de
“um livro [ou caderno] feito, geralmente, com materiais encontrados e reciclados, usado como uma forma de coletar e registrar memórias, pensamentos, ideias e inspirações.”
What is a Junk Journal?, do blog Art Journalist

Como pesquisadora em Design, não consigo ver a ideia de junk journaling como um simples hobby; pra mim, é uma imensa contribuição para o estudo de impressos efêmeros e memória gráfica. Minha principal referência pra fazer uma afirmação como essa é o artigo “Um olhar do design gráfico sobre memória, efêmeros e afeto: delineando a memória gráfica brasileira”, da pesquisadora Shayenne Resende Reis.
🧠 Qual a relação entre junk journaling e memória gráfica?
Impressos efêmeros são “itens de papel transientes de todo o dia – a maior parte impressa – que são manufaturados especificamente para serem usados e jogados fora”; e “fazem parte de um mundo de impressos que se caracterizam por serem abundantes na época em que são impressos, desaparecendo logo a seguir, após serem jogados fora”. Ou seja: são panfletos publicitários, rótulos de bebidas, embalagens de talheres descartáveis, ingressos e entradas, passagens de metrô – justamente os artefatos visados pra compor os junk journals.

Os efêmeros refletem aspectos do tempo em que foram criados. Dessa forma, a popularização dos junk journals, embora sem pretensão acadêmica ou científica, contribui para a preservação da memória gráfica, mesmo que isso se dê de forma individual e local.
Quando uma pessoa guarda uma passagem de metrô da primeira vez que visitou São Paulo, ela sabe que aquela passagem não pode mais ser usada para seu propósito original (pegar o metrô). O que acontece é um deslocamento para uma nova função: agora, o artefato impresso que é a passagem tem o propósito de evocar lembranças daquele tempo, daquela viagem. É assim que os efêmeros se relacionam com a memória e o afeto. Ainda segundo o artigo “Um olhar do design gráfico sobre memória, efêmeros e afeto: delineando a memória gráfica brasileira”:
“Por meio destes objetos gráficos surgem afetos tão singulares que tornam possível a sobrevivência da memória, e dessa forma, evita-se o esfacelamento deste produto gráfico visual. (…) A forte característica dos “artefatos de memória” é a permanência destes objetos na vivência do usuário, mesmo que não possua formas de usá-lo para suas funções projetadas inicialmente. O objeto passa ser parte de um universo por vezes lúdico, poético e nostálgico.”
Além de falar sobre memória gráfica e sobre história do Design, um junk journal também pode nos contar sobre a vida do autor ou autora: o que fazia para se divertir, como se locomovia, o que comia e bebia e o quais eventos foram mais marcantes em sua vida.

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Está aberta a pré-venda da segunda tiragem de Glifo por Glifo, um guia de escrita para designers e outros profissionais criativos que desejam explorar a escrita como uma extensão do próprio processo de criação. Em 32 páginas impressas em risografia, o livro oferece teoria, reflexões e exercícios práticos para desenvolver a escrita livre e autoral, especialmente para quem está começando.
O livro foi lançado no final do ano passado, como resultado do meu TCC em Design. Se você ficou curioso e quer saber mais sobre, eu já contei sobre o projeto em algumas edições da newsletter.
📸 Como as redes sociais ameaçam essa construção de memória
Para a surpresa de ninguém, a espetacularização da vida através das redes sociais ameaça nossa relação com a criatividade, com nossos hobbies e, no caso dos junk journals, nossa construção de memória individual. Eu conheci o conceito de junk journaling através do TikTok. São mais de 500 mil publicações na hashtag #junkjournal e mais de 100 mil em #junkjournaling. Isso não precisa ser um problema em si (tudo é problematizável, mas não é o foco desse texto) – eu também conheci os desenhos pra colorir Bobbie Goods por lá, e se tornou uma atividade super prazerosa que eu divido com a minha irmã.
A questão não é conhecer ou compartilhar hobbies e novas práticas artísticas através das redes sociais, mas o foco exclusivo na estética que essas redes nos empurram. O problema é quando nossa atenção não está no processo, mas no resultado que vamos fotografar e postar quando aquela atividade acabar. E o que isso tem a ver com junk journals?

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Se a ideia de que pessoas em diferentes lugares do mundo e com rotinas variadas começaram a colecionar impressos efêmeros em seus cadernos me emociona é porque eu amo design e cultura impressa. É porque eu me interesso pela realidade material, pela valorização do cotidiano que nos cerca. Eu vejo arte e construções criativas valiosas em embalagens de bala e saquinhos de chá ornamentados. Mas acabei descobrindo que, para algumas pessoas que mantém junk journals, a magia não está em observar o mundo ao redor e encontrar coisas bonitas e que valem a pena ser guardadas. Tem gente que prefere comprar junk journals cutouts na Amazon pra preencher suas páginas, garantindo que elas vão ficar mais… aesthetically pleasing. Afinal… lixo não é tão instagramável, né?
Isso meio que acabou com o meu dia. Essa vertente performática do junk journal, na qual a aparência é mais importante do que a descoberta, ignora a ideia de ressignificar impressos efêmeros com os quais temos contato. Além de ser mais um incentivo ao consumismo (comprar cutouts “novos” ao invés de apenas encontrá-los por aí), esse material final não nos conta sobre aquela pessoa de forma íntima e cotidiana. Bom, na verdade, conta um pouco, sim: ao analisar um junk journal performático, daqui a 50 anos, historiadores do Design vão concluir que o autor teve seu cérebro derretido pelas redes sociais a ponto de performar mesmo em um ambiente tão pessoal como um diário de sucata.
Esse incentivo ao consumo não é exclusivo dos junk journals, mas permeia todo e qualquer hobby que se torna popular na internet. Vai começar a colecionar lixinhos? Precisa comprar um caderno só pra isso e ter os lixos “certos”. Vai pintar desenhos Bobbie Goods? Você precisa comprar os marcadores certos, os que não mancham o desenho, o kit com 112 cores. Atividades que deveriam ser escapes criativos, formas de expressão pessoal e lazer analógico se transformam em desculpas para comprar e “conteúdo” para compartilhar no TikTok ou no Instagram.
Observar esses aspectos me chateia e me lembra que, em termos de redes sociais e espetacularização da vida, precisamos estar sempre vigilantes: por que estou fazendo o que estou fazendo?
obrigada por ler até aqui! muito obrigada a quem compartilhou páginas de seus junk journals pra ilustrar essa edição :) e você, já conhecia esse universo? ou se interessa por memória gráfica e impressos efêmeros? fique a vontade para responder esse e-mail! e se você acha que alguém que você conhece gostaria dessa edição, compartilhe:
Cada vez mais eu vejo processos analógicos como resistência em uma realidade cada vez mais e mais digitalizada e comercial (visto que eu trampo com design e muitas vezes chega a ser mentalmente exaustivo). Não é a procura pela perfeição no método de fazer esses journals, mas sim um processo de coleta rupestre, uma atividade de curadoria do próprio cotidiano, não tem coisa mais linda que isso. O jeito de fugir das pressões das redes sociais é... fugir delas de fato, cada dia uso menos essas plataformas e tento me conectar com comunidades físicas em "ambientes verdadeiros" (aspas por não conseguir encontrar um termo melhor no momento). A felicidade de ver essa bagunça que muita gente não gosta é inenarrável e uma das coisas que mais me faz querer conhecer coisas e espaços novas.
Obrigada pelo texto, hele <3
obrigada pela ode aos junk journals! também fazia isso quando não tinha nome, guardando os papeizinhos efêmeros pra lembrar do meu dia-a-dia... hoje vou folhear minhas agendas antigas e os ingressos de cinema tão lá tudo apagado. rs uma pena que na internet hoje tudo pode virar performance, né? eu até evito compartilhar algumas das minhas páginas de colagens, porque num pequeno momento performático posso acabar contaminando o processo futuro...