pode parecer estranho perguntar “o que é um livro?” quando esse é um objeto tão conhecido; talvez não com profundidade, mas mesmo alguém que não tem o costume de ler deve estar minimamente familiarizado com um. quais características de um livro o tornam, de fato, um livro? e se designers podem projetar novos livros, como eles devem se parecer? devem ser iguais a todos os outros ou podem ser diferentes? o quanto podem ser diferentes?
📖 Nem tudo cabe num livro
No início do mês chegou na minha casa a Revista Recorte #3. No artigo “Cosmopolíticas Editoriais”, os autores Felipe Carnevalli e Paula Lobato compartilham sua experiência diagramando livros assinados por mestres e mestras dos saberes tradicionais — indígenas, quilombolas, ribeirinhos, periféricos, etc. Durante esse processo, eles se depararam com um questionamento: como “comprimir” um conhecimento tão complexo em uma estrutura tão rígida e tão eurocêntrica como o livro? Eles escrevem:
“O que essa prática em aliança nos permite pensar sobre o circuito editorial, de forma mais ampla? O que acontece quando o pensamento e a oralidade dos mestres e mestras dos saberes tradicionais ocupam os livros impressos e desafiam a linguagem gráfica a se aproximar de modos outros de narrar o mundo?”
O que me levou a me perguntar: como a estrutura do livro pode ser modificada para honrar e potencializar o seu conteúdo? Ou ainda: quais são os limites da anatomia de um livro? O quanto se pode remover ou adicionar a essa estrutura sem que deixe de ser um livro?
Tradicionalmente, um livro é um objeto que se origina a partir do códice, “um veículo de escrita composto de folhas dobradas costuradas ao longo de uma aresta”, que substituiu os rolos de papiro e pergaminho que antes carregavam os textos. Ele precisa ser transportável e é composto por páginas encadernadas contendo texto e/ou imagens. Mesmo seguindo esses princípios básicos, ainda há muitas formas de organizar um conteúdo em formato de livro - mas o quanto é possível experimentar dentro disso?
📕 Livros ideais
Ao longo da história do design, muitos teóricos tentaram descrever um livro ideal. Em 1893, William Morris estipulou no ensaio “O livro ideal” (haha) as seguintes condições para o design de um livro digno: um projeto adequado ao conteúdo (“uma obra sobre cálculo diferencial, um livro de medicina, um dicionário (…) dificilmente serão adornados de maneira tão exuberante quanto um volume de poemas líricos”), páginas claras e de fácil leitura, o uso de um tipo bem projetado e uma margem proporcional à mancha de texto em tamanho. Além disso, “o branco deve ser claro e o preto, escuro”, ou seja, deve haver bastante contraste entre a cor das páginas e do texto - Morris abominava a ideia de páginas coloridas. As letras deveriam medir pelo menos 1 paica, ou seja, 12 pontos, e margem interna devia ser a menor de todas as quatro enquanto a inferior devia ser sempre a maior. Quanto ao papel utilizado, livros grandes deviam ser feitos com papel mais grosso e livros pequenos, papel mais fino, a fim de melhorar o manuseio dos exemplares. Ufa, acho que era isso.
A pragmaticidade em relação ao design editorial não foi uma exclusividade de Morris. Jan Tschichold publicou, em 1975, uma coletânea de mais de vinte ensaios sob o título “A forma do livro”. No artigo “Jan Tschichold, a forma e o livro”, também publicado na Revista Recorte, Flora de Carvalho sintetiza sua linha de pensamento:
“Tschichold procura sistematizar a intuição, descrevendo vigorosamente os parâmetros de qualidade de uma boa composição. Para ele, somente um impresso que honra a tradição do livro europeu é capaz de emergir de prateleiras e mais prateleiras de modismos injustificados. Ou seja, o design de qualidade teria origem na pesquisa histórica e na análise científica de tudo que já foi feito. E a inovação pela inovação não passaria de um capricho.”
Tanto Morris quanto Tschichold certamente conseguiram enunciar diretrizes muito úteis para o design editorial, garantindo a produção de páginas organizadas, claras, legíveis e esteticamente agradáveis. Mas será que isso é o suficiente para a nossa realidade? Afinal, a quem serve um (ou dois, ou três) modelo moldado nos saberes e na literatura europeia?
📚 Algumas possibilidades
Comecei a buscar, então, projetos editoriais de livros que suprimissem, ignorassem ou modificassem algumas dessas regras ou estruturas tradicionais, tentando entender até onde o formato de um livro pode ser esticado. E aqui vão alguns achados interessantes:
Um livro feito sem papel (Letters to the Future)
Letters to the Future é um livro feito com plástico reciclado e que não deve se decompor pelos próximos mil anos. O objetivo do projeto é conscientizar a respeito dos danos ao meio ambiente causados pelo plástico de uso único - por isso, os exemplares foram produzidos a partir de materiais como sacolas plásticas, caixas de isopor e plástico bolha. Já que o plástico demora centenas de anos para se decompor, o conteúdo do livro é composto por 327 cartas coletadas de 22 países em que os autores enviam mensagens para seus futuros descendentes.
Um livro sem lombada (February 20, 2011)
February 20, 2011 é um livro sem costura e sem lombada, cujas páginas são dobradas em sanfona. Projetado por Roy Tatum, o livro documenta tudo o que o designer fez naquele dia específico. Ele registrou suas atividades com uma câmera que capturou seu ponto de vista durante todo o dia usando a técnica de fotografia slit-scan e condensou as imagens em uma linha do tempo literal que, quando dobrada, forma o livro - que também pode ser folheado “normalmente”.
Um livro com duas caras (O médico e o monstro)
Nessa proposta de capa experimental para o clássico “O médico e o monstro” (Dr. Jekyll and Mr. Hyde é o título original), o designer Andy Taylor brinca com a dualidade presente na história através de uma capa em zigue-zague, que apresenta textos diferentes de acordo com o ângulo de observação. Além disso, o material escolhido — alumínio — reflete a imagem distorcida do próprio leitor. Não quero dar spoilers (apesar de que esse livro é de 1886…), mas quem já leu sabe que essa ideia tem tudo a ver com o tema da obra.
Um livro ilegível (Unreadable)
Unreadable é um livro cujo projeto editorial vai contra tudo que William Morris gostaria que fosse feito. Nas palavras da designer responsável, Mona Hörtnagl, a ideia por trás do projeto é “tornar textos e imagens ilegíveis por meio de técnicas experimentais, como escrever textos com cera de vela ou posicionar as letras muito próximas umas das outras. Em princípio, todas as regras da tipografia são quebradas. A forma do livro também é experimental: é um círculo. Com isso, a forma clássica dos livros é substituída. É claro que chama a atenção em todas as estantes.”
Um livro-jardim (O livro dos jardins)
O livro dos jardins é um livro de poesia publicado pela editora Quelônio no qual “os poemas são dedicados a flores como o dente-de-leão, o girassol e a rosa, a vegetais como os cactos, à folhagem, ao sol e à terra”. O projeto gráfico é assinado por Sílvia Nastari e a capa é feita de papel artesanal, produzido com resíduos vegetais e aparas industriais de papel; e cada exemplar acompanha um marcador de página de papel com sementes de camomila, que pode ser plantado em um jardim de verdade.
obrigada por ler até aqui! queria compartilhar mais, mas e-mails tem um tamanho limite. como sempre, fique a vontade para responder esse e-mail. espero que esse possa sempre ser um espaço de troca. e se você conhece alguém que pode curtir esse texto, que tal compartilhar essa edição? :)
Outra coisa que acho legal são aqueles livros (geralmente infantis) que tem dobraduras dentro. Você abre uma página e sobe, sei lá, um castelo!
Não sei o nome do estilo, mas acho que pode ajudar muito a contar narrativas, dar mais detalhes de algo, etc.
Fiquei imaginando um livro de medicina que você abre uma página e tem uma dobradura da parte do corpo que tá sendo falada no capítulo pra você ver mais detalhes hahaha
Vi essa semana no TikTok o livro “A Ampulheta” (The Turnglass) do Gareth Rubin (https://www.tiktok.com/@rodrigodelorenzi/video/7341136222204464390?lang=pt-BR)
São dois livros em um, e um deles é impresso de ponta cabeça. Você termina um e vira pra ler o outro (como uma ampulheta) e cada história se passa em um momento diferente do tempo.
Achei legal porque, por mais bobo que seja, é como se ele usasse o livro pra emular um objetivo físico de uma forma funcional!