#68 o supermercado é um lugar perigoso
como o design de embalagens é empregado pra enganar consumidores | tempo de leitura: 6 minutos
a cena é a seguinte: você está de frente para uma prateleira no supermercado na seção “Naturais, orgânicos e fitness”, tentando decidir qual pacotinho de biscoito levar pra casa na sua vigésima quinta tentativa de comer melhor (será que não era melhor levar uma fruta?). cada embalagem empilhada naquela prateleira está gritando “me escolha! me escolha!” em tons de verde ou terrosos, ostentando imagens cuidadosamente recortadas de ramos de trigo, aveia e favos de mel. é assim — construindo um imaginário visual natural e saudável — que o design gráfico se torna uma parte muito importante da estratégia das empresas que produzem alimentos ultraprocessados: te convencendo de que aquela comida tem atributos especiais, superiores aos das outras. para cada passo que as agências reguladoras dão para proteger os consumidores, as empresas vão lá e dão outro para se esquivar. na última semana pensei um pouco demais sobre embalagens. vamos?
🚩 Uma introdução ao problema
Publicidade é uma área controversa; é um jogo de convencimento, e nem sempre é limpo. O assunto se torna ainda mais sensível quando está ligado a alimentação e saúde, quando pode impactar diretamente no bem estar dos consumidores. Mas publicidade é, no fim das contas, um trabalho a ser feito por alguém.
Em um mundo com tantas opções de produtos, as coisas precisam ser compradas ou a empresa responsável vem a falência. Eu até diria que algumas das estratégias empregadas em publicidade são justas, mas como em tudo no mundo, tem gente que exagera. Ou que mente. E o design das embalagens, da escolha de cores às imagens impressas no plástico metalizado que envolve biscoitos ultraprocessados, é uma parte significativa dessa estratégia de convencimento.
Para quem trabalha com comunicação visual pode até ser mais fácil identificar as estratégias mais comuns: o uso de cores terrosas e muito verde, a aplicação de imagens de trigo, grãos integrais, frutas in natura — mesmo que esses nem constem na lista de ingredientes em quantidade significativa. É tudo… figurativo, vamos dizer.
🔍 Design e tensões gráficas
Em 2022 a Nestlé foi notificada por propaganda enganosa ao anunciar na embalagem frontal de um biscoito o sabor “Aveia & Mel”, com direito a um favo de mel douradíssimo posando ao lado de ramos de aveia… sendo que o produto nem tinha mel na lista de ingredientes:
Na denúncia, o Idec apontou que os biscoitos da linha Nesfit: Aveia e Mel; Nesfit Leite e Mel; Nesfit Cookie Cacau, Aveia e Mel; e Nesfit Matinal Mel com Amêndoas, apesar de trazerem a palavra mel no nome, incluindo o alimento com destaque na embalagem, não trazem o ingrediente na lista de sua composição.
Com a busca por alimentos saudáveis ou “fitness” aumentando a cada ano, se torna interesse dessas marcas que seus produtos sejam percebidos como mais saudáveis ou menos prejudiciais, mesmo quando não são. Fazer isso é relativamente fácil — há algum tempo eu me deparei no TikTok com o perfil de um profissional de branding cujo conteúdo se resume em “transformar” as embalagens de comidas ultraprocessadas para que pareçam saudáveis (ou o contrário, tipo criar uma embalagem de água prejudicial pra saúde, mas não vem ao caso). Um de seus vídeos mais famosos é fazendo um redesign de uma lata de Coca-Cola. Apesar de os vídeos terem um propósito de entretenimento, não consigo deixar de pensar que parece muito fácil manipular a percepção de consumidores através da linguagem (verbal e visual) de uma embalagem.
Na edição 43 da makers gonna make eu escrevi sobre como as normas de rotulagem da Anvisa afetam as embalagens de cigarro. Os avisos obrigatórios sobre os danos à saúde criam uma tensão gráfica com os elementos da marca, que tentam convencer consumidores apesar das advertências. E algo parecido vem acontecendo nas embalagens de comida desde que entrou em vigor a obrigatoriedade dos selos “alto em” para alimentos.
A norma, que entrou em vigor em outubro de 2022, define que todo alimento alto em açúcar adicionado, sódio ou gorduras saturadas deve conter na embalagem frontal um pequeno aviso em formato de lupa (na verdade, um retângulo com uma lupa). Você já deve ter visto por aí, e se você ainda encontrar embalagens sem os selos é porque as empresas tem até outubro de 2024 para esgotar rótulos antigos, que já estavam produzidos.
Quando foi anunciada, em 2020, a nova rotulagem levantou uma controvérsia: testes da própria Anvisa e de outras instituições indicavam que os avisos em formato de triângulo eram mais eficientes como advertência aos consumidores. Mesmo assim, o formato de lupa foi escolhido.
De toda forma, parece que a nova rotulagem tem tido efeito nas compras: uma pesquisa recente divulgada pela Folha de S. Paulo indicou que 56% dos consumidores percebeu os alertas e 46% reconsideraram suas escolhas alimentícias com base nele, deixando de comprar ou planejando reduzir o consumo aquele produto específico no futuro. E eu sei, tem muita gente que acha legal ficar postando no Twitter que “ah, esse alerta não faz nem cosquinha no meu cérebro, compro mesmo assim!” mas o objetivo não é individual, e sim de conscientização coletiva, e é um esforço gráfico importante.
Mas já que estamos falando também do design a serviço do mal, quer dizer, de megacorporações com interesses obscuros em manipular o que eu e você escolhemos no supermercado… Dá uma olhada nesse pacote de “Moça Flakes”, um cereal de leite condensado (eu acho?) da Nestlé. As fotos são do Thairony Ferdz, no LinkedIn.
A empresas sempre vão tentar burlar tudo quanto é norma. A Nestlé encontrou uma solução de design impressionante: colocar o aviso nutricional em um espaço a ser destacado (e descartado) assim que o consumidor abre o pacote para consumir. Dei uma espiada nos armários daqui de casa e encontrei um saco de batata palha da Elma Chips que faz basicamente a mesma coisa: posiciona os alertas no canto superior direito, bem onde se costuma rasgar o pacote pra abrir. Não vou ficar surpresa se isso se tornar uma tendência.
No fim, os alertas de lupa são uma exigência recente e provavelmente ainda vamos ver ajustes na regulamentação e fiscalização, e é claro, as consequentes soluções gráficas das marcas para se esquivar delas. Quem mais está curioso pra ver?
obrigada por ler até aqui! as últimas edições não tem me levado a conclusão alguma sobre nada, mas é sempre bom registrar observações, eu acho. como sempre, fique a vontade para responder esse e-mail se quiser conversar, compartilhar algo ou até mesmo criticar algum ponto da newsletter. espero que esse possa sempre ser um espaço de troca. e se você conhece alguém que pode curtir esse texto, que tal compartilhar essa edição? :)
nossa eu simplesmente adorei essa edição. já tinha me ligado sobre o assunto, mas nunca me toquei sobre o "hack" das empresas em retirar os rótulos de "alto em", simplesmente chocada 😶