#43 embalagens de cigarro
ou "o campo de batalha entre as marcas e o antitabagismo" | tempo de leitura: 7 minutos
há algumas semanas,um amigo muito querido mandou uma sugestão de pauta a partir desse tweet. ele fala um pouco sobre a escolha da “cor pantone mais feia do mundo” para as embalagens padronizadas de cigarros em alguns países do mundo, como a Autrália, França e Bélgica. o Brasil não adota esse modelo de embalagem, permitindo que os fabricantes de cigarro ainda usem o projeto gráfico da caixa como um espaço de propaganda. comecei a pensar sobre a tensão gráfica criada a partir disso: numa parte da embalagem, o fabricante quer te convencer a fumar. em outra, a anvisa quer te convencer a não fumar de jeito nenhum. é um campo de batalha, e a arma é a comunicação visual.
🥊 Disputa de narrativas
Eu nunca cheguei a assistir Madmen, mas já tentei assistir umas três vezes, o que quer dizer que eu já assisti o piloto mais vezes do que o brasileiro médio. A série começa justamente apresentando a genialidade publicitária do protagonista, Don Drapper, ao idealizar uma campanha para os cigarros Lucky Strike logo após a proibição da associação entre tabaco e saúde na publicidade. Se você não conhece ou quer relembrar a cena, é essa aqui (pule pra 3:20 se quiser ir direto ao ponto; as legendas estão em inglês, mas aqui tem a mesma cena dublada em pt):
Fun fact: o slogan “It’s toasted” é usado pela Lucky Strike desde 1917 - aparentemente, essa era uma vantagem competitiva em relação ao tabaco seco ao sol. A cena da série é toda inventada mesmo.
Em todo o mundo a publicidade de cigarros e outros produtos derivados de tabaco vem sendo cada vez mais limitada pela atuação de órgãos de saúde e agências reguladoras; mas será que essa limitação quer dizer menos publicidade? Como o piloto de Madmen deixa bem claro, na verdade, isso quer dizer publicidade mais sofisticada: os fabricantes precisam encontrar formas de permanecer relevantes frente as proibições, enquanto as agências reguladoras precisam investir em alertas que sejam eficientes; e o design e a comunicação visual atuam dos dois lados. A embalagem se torna um espaço de disputa de narrativas.
De acordo com a legislação brasileira atual, as advertências sanitárias devem ocupar 100% da parte de trás da embalagem e 30% da frente. Então basicamente a embalagem fica dividida entre a área que o fabricante de cigarro vai usar pra te convencer a fumar e a área que a ANVISA vai usar pra te convencer a não fumar. Tudo isso acontece ao mesmo tempo, nos mesmos centímetros quadrados de embalagem.
🚬 Como os fabricantes usam o design de embalagens para promover o consumo de cigarros?
Com a proibição de campanhas publicitárias e patrocínios de eventos, as embalagens são o único espaço onde as marcas podem expressar seu trabalho de branding. Eles usam as estratégias de comunicação de valores através do visual já conhecidas por profissionais das área de design gráfico e publicidade: cores, grafismos e imagens para caracterizar um lifestyle do consumidor. Tem cigarro de quem é livre, de quem é rico, de quem é descolado, o cigarro de quem é intenso e de quem é suave.
“Percepções de adultos fumantes e não fumantes sobre embalagens padronizadas de cigarros” foi a tese de mestrado do pesquisador Felipe Lacerda Mendes, e ela traz conclusões muitos interessantes sobre como os fabricantes de cigarro aproveitam a área das embalagens para promover o tabagismo:
“Ela [a embalagem] agora é a principal responsável por transmitir anseios, atributos, status, e outras características desejáveis para o fumante e para seus potenciais novos consumidores: crianças e adolescentes. Para tanto, é cuidadosamente desenhada com elementos que parecem despertar interesse e transmitir o que cada segmento populacional anseie para satisfazer seu consumo ou aparentar no contexto social. Esse objetivo ficou evidente na pesquisa, pois os entrevistados reconheceram que a indústria está investindo no embelezamento das embalagens, com características para diferentes públicos, de maneira a atrair a atenção para o consumo. Cores, desenhos e outros elementos gráficos presentes nos maços foram reconhecidos como capazes de gerar “curiosidade”, “vontade de experimentar” e “vontade de fumar”. E o elemento cor parece ser a principal ferramenta de design propulsora da atenção.”
Felipe usa a expressão “embalagem crachá” para descrever um fenômeno que é a projeção de características evocadas pelo design da embalagem na pessoa que a carrega consigo, numa associação entre usuário e marca. Vários dos entrevistados do estudo relatam ter percepções positivas com base nas embalagens atuais, apesar dos avisos sanitários - demonstrando que os elementos de design empregados pelas marcas tem a capacidade de diluir a efetividade dos alertas. Dunhill foi associado a exclusividade, elite, festas e diversão; Lucky Strike foi associado a requinte e prazer; Derby foi apontado como um cigarro de dia a dia, cotidiano, mas também a celebrações mais populares; e Camel foi associado a energia. Já quando tiveram que expressar o que sentiam ao ver embalagens padronizadas (sem intervenção de branding - vou explicar melhor como elas são mais a frente), os entrevistados não evocaram essas características, focando mais nos alertas sobre saúde.
🚭 Como as agências reguladoras interferem no design de embalagens para inibir o consumo de cigarros?
No Brasil, as primeiras advertências em embalagens de cigarro começaram em 1988, mas eram apenas verbais; avisos com imagens foram implementados a partir de 2001. Desde então são realizadas pesquisas periódicas e atualizações nas advertências, uma vez que “a rotatividade das imagens garante renovação do conteúdo das frases e das fotos, que se tornam ineficientes após um longo período de veiculação”, segundo o INCA.
Para a escolha das fotos e do texto há muita pesquisa envolvida, e a última atualização, em 2018, conta com a cor pantone 116 C (um amarelo muito vivo), fotos menos “apelativas” do que as anteriores, e frases mais diretas: avisos como “morte” e “impotência” se tornaram “você morre” e “você brocha”, por exemplo.
Eu escolhi comparar os avisos de impotência pra não publicar gore aqui na makers, mas as imagens a partir de 2008 ficam bem pesadas. Só que as pessoas podem ficar dessensibilizadas se são expostas a elas por muito tempo, e em 2018 as fotos escolhidas tem um tom menos sangrento e mais sóbrio.
Afinal, funciona? Você pode já ter ouvido de algum fumante algo como “todo mundo vai morrer mesmo”, talvez você até seja essa pessoa, mas sim, pesquisas no Brasil e em outros países mostram que as advertências gráficas são eficientes em impedir não-fumantes de experimentar cigarros, além de fazer até metade1 dos fumantes se tornarem mais preocupados com os efeitos sobre a saúde e considerarem parar de fumar. A questão é que os fabricantes de cigarro sabem disso, então investem tudo o que podem para diluir essa efetividade.
A embalagem padronizada, anunciada primeiro pela Austrália e depois adotada por 17 países, é uma tentativa de colocar um fim nessa disputa. Ela é “entendida como aquela sem logotipos, cores, imagens de marca ou informação promocional que não seja o nome da marca e o nome do produto, exibidos em uma cor e um estilo de fonte padrão”. A cor padrão adotada é a Pantone 448 C, eleita por pesquisadores como a cor menos atraente possível para um consumidor - lembra como a pesquisa do Felipe Lacerda mostrava a cor como um dos fatores mais atrativos das embalagens? A embalagem padronizada tem se mostrado eficiente nos países em que foi adotada e é recomendada pela OMS desde 2016.
O design não é necessariamente o único responsável, uma vez que as leis antitabagismo costumam incluir outras medidas, como a restrição de pontos de venda, a proibição de fumar em determinados locais e o aumento dos impostos sobre produtos fumígenos. De qualquer forma, a importância do design no processo de decisão do consumidor é uma tese amplamente aceita - não tem porque imaginar que ele não seria importante também em uma tentativa de inibição do consumo. O avanço da legislação antitabagista ao redor do mundo considera esse impacto e vem encontrando formas engenhosas de usá-lo a seu favor.
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obrigada por ler até aqui :) se você for o lucas, por favor, pare de fumar - tabaquinho orgânico também faz mal. se você não for o lucas, fique a vontade para responder esse e-mail se quiser conversar, compartilhar algo ou até mesmo criticar algum ponto da newsletter. espero que esse possa sempre ser um espaço de troca. até a próxima terça!
Que edição incrível! Essa indústria é muito peculiar em vários sentidos e, para o bem ou para o mal, muito inteligente na hora de se reinventar. Adorei a análise :)
amei a menção ao piloto de Mad Men, me identifiquei muito!! assisti várias vezes também e só engatei na série quando, na enésima tentativa de ver, pulei pro segundo episódio hahahah
edição muuuuito boa, parabéns!