#60 criatividade, da autoajuda à compulsão
ou "acho que sou viciada em criar" | tempo de leitura: 10 minutos
uma dia desses, assim que acordei, antes de beber água ou mesmo checar minhas notificações como qualquer pessoa em 2023, eu peguei um estilete na minha mesa, fui até um outro cômodo da casa e comecei a cortar pedaços de papel e colá-los de volta. eu experimentei um novo formato de zine, que muito provavelmente não é inédito no mundo, mas é diferente o suficiente dos que eu já havia testado. mais tarde, quando finalmente fui pegar um café, comecei a me perguntar se aquela ideia havia vindo a mim em sonho ou só surgido no meu primeiro segundo acordada; e logo em seguida, me perguntei como e por que eu tenho tantas ideias. não que sejam boas sempre ou eu seja algum tipo de gênia, mas desde que me lembro estou sempre envolvida em algum tipo de processo criativo, e sei que muitas pessoas lutam contra o demônio contrário, a falta completa de ideias (seja lá o que for uma ideia) - e então decidi me dedicar a ler livros sobre criatividade pra buscar algum tipo de resolução. foi assim que nasceu essa edição :) vamos?
Autoajuda e mediunidade
Uma coisa comum a muitos livros que falam de criatividade é que eles possuem uma alta carga de discurso de autoajuda. A impressão que tenho é que há um senso comum de que o medo de fracassar, a baixa autoestima ou algo parecido é o fator definidor que impede a maioria das pessoas de viver uma vida mais criativa. Uma baixa autoestima pode impedir muitas pessoas de realizarem muitas coisas, não apenas no campo artístico; mas autoajuda por autoajuda, não vejo porque alguns parágrafos sobre confiar em si mesmo tornariam qualquer pessoa mais criativamente capacitada. Então minha primeira tarefa foi tentar não morrer de tédio quando chegava nessas partes específicas de cada livro, tentando me concentrar na minha tarefa principal: entender mais sobre criatividade.
Nada contra um pouco de motivação - eu amo camisetas de academia com frases tipo “100% determinação”, “Esmaga que cresce”, “Just run”, “Depois da linha de chegada volte a treinar”, etc etc. Mas eu estou atrás da criatividade, certo? Estou atrás do que esses autores que se propõem a explicar e me ajudar para replicar sua criatividade tem a dizer, então continuo lendo.
“O Caminho do Artista” de Julia Cameron é, disparado, o livro sobre criatividade que mais me recomendaram na vida. E ela educadamente avisa logo no início do livro que
“Como O caminho do artista é, em essência, uma jornada espiritual, iniciada e praticada por meio da criatividade, este livro usa muitas vezes a palavra Deus. Essa escolha pode incomodar alguns leitores – pode lembrá-los de conceitos antiquados, desagradáveis ou mesmo inconcebíveis sobre Deus, dependendo de como foram educados para compreendê-lo. Mas, por favor, mantenha a mente aberta.”
Manter a mente aberta ao que, exatamente? Eu cresci ouvindo e ainda ouço um discurso sobre a criatividade que a trata exatamente assim, como um chamado divino, uma elevação espiritual, um dom. Não tem nada de novo nessa visão, e enquanto a criatividade for vista dessa forma o que parece é que ela não dá trabalho além de “se manter aberto” à expressão divina que vai se realizar eventualmente.
Julia apresenta algumas ferramentas e exercícios práticos para que os leitores possam se tornar melhores receptores de ideias, como as páginas matinais, o hábito de escrever três páginas sobre qualquer assunto, a mão, toda manhã; o date com o artista, a prática de se levar pra passear sozinho uma vez na semana; e uma série de pequenos exercícios como listar pessoas que te inspiram, escrever cartas, etc. Eu testei alguns deles e acho que são eficientes, mas talvez não pela sua abordagem mediúnica. Eu acho que escrever todos os dias me torna uma escritora melhor porque se trata de prática de escrita, e que passear mais me torna uma designer mais inspirada porque me expõe a mais conteúdo artístico e criativo; posso admitir isso sem enxergar meu processo criativo como um canal de expressão de algo “divino”. Pode parecer que estou sendo um pouco egoísta, sem querer dividir os créditos pela minha prática criativa com deus, mas não me parece menos egoico chamar o próprio trabalho de “criação divina”.
Apesar de ser o mais frequente entre as recomendações, esse não é o único livro celebrado a tratar a criatividade com essa abordagem mística e espiritual. Em “O Ato Criativo: Uma forma de ser”, Rick Rubin passa por pontos parecidos trocando a palavra “deus” por “universo”. Não acho que isso resolve a questão. Esses livros podem ter conselhos interessantes; Rubin insiste que seu leitor se mantenha curioso como uma criança, quebre regras, experimente e etc - bons conselhos, sim, mas o retorno constante à teorização da criatividade como algo externo esperando para se manifestar tira dos criadores a sua autonomia e até sua responsabilidade por cada escolha estética ou temática que fazem.
O meu problema com a abordagem mediúnica da criatividade não é relacionado à fé; se você acredita em deus e acredita que ele te presenteia com todas as suas ideias e essa crença te torna uma pessoa mais feliz e criativa, ótimo. Mas se você gostaria de ser uma pessoa mais criativa ou de entender melhor a criatividade essa abordagem pode não ser a mais eficiente, porque ela apenas substitui um mistério (o da inspiração) por outro (o de deus).
Tentando não morder o meu sofá
Tive receio de começar a ler “A Grande Magia” por causa do título - nossa, mais uma pessoa que já “chegou lá” espiritualizando o trabalho criativo. Mas até que não. Elizabeth Gilbert usa o termo “magia” pra falar de inspiração, que pra ela é um grande mistério e pronto. Nisso ela não está tão distante desses ouros livros mais famosos. Mas ela ao menos tenta responder minha pergunta, por que as pessoas criam?, e escreve:
Sabe como aquelas pessoas que têm casos extraconjugais sempre conseguem arranjar tempo para encontrar os amantes para sessões de sexo selvagem, transgressor? O fato de trabalharem longas horas e de terem famílias para sustentar não parece ser um problema; ainda assim conseguem arrumar tempo para dar suas escapadas, independentemente das dificuldades, dos riscos e dos custos. Mesmo que só tenham quinze minutos juntos na escada, aproveitam o pouco tempo para transar loucamente. (Na verdade, o fato de só terem quinze minutos juntos faz com que o tesão aumente ainda mais.) Quando estão tendo um caso, as pessoas não se importam em perder horas de sono ou pular refeições. Fazem todos os sacrifícios necessários e superam quaisquer obstáculos para poderem estar sozinhas com o objeto de sua devoção e obsessão, porque é importante para elas.
Fiquei pensando que esse trecho não explica apenas porque algumas pessoas criam tanto, mas também explica porque algumas tem tanta dificuldade em criar. Pode ser falta de inspiração ou medo de fracassar, como outros autores já abordaram. Mas também pode ser porque elas não são apaixonadas pelo processo. Pode ser porque conseguem pensar em muitas coisas mais divertidas que preferiam fazer ao invés de criar algo. Se esse for o caso, por que insistir? Se você não gosta de escrever, de desenhar, se não quer seguir uma carreira onde será requisitado que você crie alguma coisa todos os dias, por que diabos você faria isso?
Eu entendo que a criatividade - especialmente se tiver relacionada a uma profissão glamourosa ou compensação financeira - carrega um certo prestígio. Só que criar é uma ação, uma jornada, e não os resultados. O resultado é uma parte mínima; para alguns criadores, o “resultado” nunca chega, e mesmo assim eles seguem criando porque gostam. Agora se você gosta, criar é quase uma compulsão. Pra mim, pelo menos, é mais fácil escrever esse texto do que não o fazer.
Um pouco mais a frente no livro, que é cheio de anedotas como todo livro de autoajuda, Elizabeth escreve:
Ter uma mente criativa é como ter um cão pastor como animal de estimação: ele precisa se exercitar, do contrário vai lhe causar uma quantidade escandalosa de problemas. Dê a sua mente um trabalho a fazer ou ela acabará encontrando um, e você pode não gostar do trabalho inventado por ela (comer o sofá, cavar um buraco na sala de estar, morder o carteiro etc.). Levei anos para aprender isso, mas cheguei à conclusão de que se não estou ativamente criando algo, é provável que esteja ativamente destruindo algo (a mim mesma, um relacionamento ou minha paz de espírito).
Ao canalizar a maioria da minha energia para projetos como cartazes, e-mails longos e desenhos eu provavelmente estou evitando que essa energia vá para outros lugares, talvez melhores (eu poderia malhar mais), talvez piores (eu poderia passar ainda mais tempo rolando o feed do Instagram). A criatividade é também uma medida de redução de danos para pessoas inquietas.
O fantasma do desempenho
Até aqui pode parecer que estou me gabando de ter muitas ideias o tempo todo, mas também estou disposta a fazer um contraponto. Eu decidi reler a coletânea de ensaios “A sociedade do cansaço” do filósofo Byung Chul-Han enquanto escrevia essa edição porque entendo que ter ideias o tempo todo, sem muito tempo de silêncio, é um sintoma da sociedade do desempenho em que vivemos. Byung descreve nosso tempo como uma era em que exploramos a nós mesmos porque “o desejo de maximizar a produção já habita o inconsciente social”. A criatividade não está imune a isso, especialmente quando se trabalha (ou gostaria de trabalhar) com ela.
Quanto mais eu crio, mais eu quero criar. Para alguns isso pode soar como um ótimo conselho de produtividade - uhu, criação infinita. Mas não funciona assim. Primeiro porque trabalho criativo cansa tanto quanto qualquer outro, e segundo porque em algum ponto se torna fisicamente impossível colocar cada ideia em prática. A sensação de não estar no meu máximo desempenho criativo é assustadora e frustrante - e sei que eu não sou a única a me sentir assim.
O excesso de ideias - assim como o consumo excessivo de vídeos curtos e tweets - pode nos tornar intolerantes ao tédio, ao silêncio, ao não fazer. E isso em si vai contra o próprio processo criativo, que requer ao menos o mínimo de contemplação, de tempo de descanso para a própria ideia. Uma obra criativa pode ser concebida em alguns minutos, como o logo do Citibank desenhado por Paula Scher em um guardanapo1; mas leva tempo até que alguém aprenda tudo o que precisa aprender para ser capaz disso. Então como podemos lidar com o ritmo acelerado e a pressão do desempenho em busca de uma prática criativa consciente?
Essa é mais uma edição que concluo sem uma resposta para a pergunta que me fez começar a escrever. Mas agora me sinto mais segura ao afirmar que escolhi as profissões que escolhi (designer, jornalista) e me dedico aos meus hobbies (produzir zines, desenhar letras, encadernar) só porque eu gosto de criar, de escrever, de desenhar, de investigar. E se você também gosta, uma hora ou outra vai se pegar criando e criando bastante, mesmo que precise de alguns exercícios e pequenos truques para fazer o cérebro pegar no tranco. É fácil repetir algo que nos faz bem. Por outro lado, se você não encontra prazer em escrever, diagramar, desenhar ou qualquer outra expressão criativa, eu sugiro que faça as pazes com esse fato - deve haver atividades mais divertidas por aí :)
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Tive dificuldade de achar um artigo legal sobre isso, mas a anedota conta que a Paula Scher desenhou o logo do Citibank em 3 segundos em um guardanapo e cobrou 1,5 milhões de dólares por ele. Depois, ela teria dito que “levou segundos pra desenhar, mas 34 anos para aprender a desenhar isso em alguns segundos”.
Um outro livro (mais ou menos) sobre o assunto: Bird by Bird, da Anne Lammot. É mais sobre labuta, pelo que eu lembro
Eu adoro A grande magia porque gosto da Gilbert, ela é maluquinha do bem e imagino que super inquieta com sua criatividade... Gostei dessa edição! Ah! Tbm não curti a cameron....