#58 design & controle
quando o design nos controla, de propósito ou não (?) | tempo de leitura: 8 minutos
oie, seja bem vinde a mais uma edição da makers gonna make. no mês passado li na
do a edição “Cê nem deveria estar aqui, querida”, um texto sobre como o substack - a plataforma que uso para enviar essa newsletter, e que está cada vez mais popular - usa um padrão enganoso de design para converter mais assinaturas para os escritores da plataforma. comecei a pensar sobre como o design pode ser uma ferramenta de controle e como isso não acontece só com os padrões enganosos, mas é quase uma questão inerente aos processos de criação… e o assunto rendeu. vamos?
🥸 Padrões obscuros (ou enganosos) e a parte do problema que enxergamos
Talvez você esteja mais familiarizado com o termo em inglês: dark patterns. O termo foi cunhado pelo designer Harry Brignull para descrever “truques” usados no design de interfaces com o objetivo de enganar os usuários. Em geral, eles são empregados para que o usuário tome alguma decisão específica - compre algo, se inscreva em algum serviço, compartilhe informações pessoais etc - que não tomaria se não fosse pelo padrão enganoso utilizado.
Se ainda está muito abstrato, eis um exemplo: se você assinou essa newsletter através do Substack, pode ser que nem queira estar aqui. O Substack usa um padrão enganoso de design para gerar mais assinaturas para newsletters hospedadas dentro da plataforma através do sistema de recomendações. Ao assinar a
, da isabela thomé, o Substack já abre uma página com outras newsletters (com as caixinhas já pré-selecionadas) pra assinar e, se você só quer continuar lendo a edição em que estava, vai sair clicando até o pop up sumir. E nessa vai assinar 3 newsletters recomendadas pela isa sem necessariamente querer. Isso acontece com qualquer newsletter dentro da plataforma (inclusive a makers), independente da vontade do seu autor - é assim que eles conseguem alegar que 40% das inscrições em newsletters vem da própria plataforma. Claro, vocês mentem-Existem outros tipos de padrões obscuros com outros objetivos. Quem nunca assinou um serviço digital gratuito e depois de três meses notou uma cobrança de R$ 14,90 na fatura do cartão? Ops, foi a renovação automática. Já tentou excluir uma conta no Instagram ou no Spotify? É bizarramente complicado.
Padrões obscuros não são design ruim ou mal feito; são uma aplicação consciente do design baseado nos nossos padrões cognitivos para maximizar os interesses das empresas por trás deles. Uma prática antiética e que merece ser apontada e reprovada, de forma que se torne menos comum com o tempo.
🕳️ A parte do problema que nem sempre enxergamos
Uma vez exposta a prática dos padrões enganosos, é fácil classificá-la como um problema: se trata de falta de ética e transparência, e em algumas instâncias é até ilegal. Mas essa está longe de ser a única forma através da qual designers influenciam decisões de usuários. Entender mais sobre padrões obscuros me fez refletir sobre a grande responsabilidade que o design carrega quando falamos de escolhas.
Ao projetar uma tela, um site, um aplicativo - o que quer que seja - são os designers que decidem as opções possíveis dentro de uma escolha. Um usuário só pode escolher entre ações que foram apresentadas a ele, e a definição dessas opções em si já limita consideravelmente suas ações possíveis. É um dilema filosófico.
Em A não coisa [2], ensaio publicado em 1990, o filósofo Vilém Flusser prevê uma sociedade do futuro na qual estaríamos divididos entre programadores e programados. Essa seria uma realidade na qual ninguém realmente tem liberdade de escolha, uma vez que cada escolha estaria submetida às capacidades do programa operado - e um programa pode ser qualquer objeto, de uma máquina de escrever a uma câmera a um revólver. O programadores, que são essencialmente designers, projetam os programas que serão utilizados pelos programados; e esses podem se iludir com a quantidade aparentemente infinita de escolhas, porque elas serão sempre muitas, tantas que são inesgotáveis - mas não finitas. Ele escreve:
Se coloco o revólver contra minhas têmporas e aperto o gatilho, é porque decidi pôr termo à minha própria vida. Essa é aparentemente a maior liberdade possível: ao pressionar o gatilho, posso me libertar de todas as situações de opressão. Mas, na realidade, ao pressioná-lo, o que faço é desencadear um processo que já estava programado em meu revólver. Minha decisão não foi assim tão livre, já que me decidi dentro dos limites do programa do revólver. (…) A liberdade de decisão de pressionar uma tecla com a ponta do dedo mostra-se como uma liberdade programada, como uma escolha de possibilidades prescritas. O que escolho, faço de acordo com as prescrições.
Sob essa ótica, tudo o que um designer projeta invariavelmente está inserido na lógica da liberdade programada e de um certo totalitarismo (Flusser usa o termo “totalitarismo programado” no ensaio, inclusive). Mas os programadores, por sua vez, também estão limitados dentro dos programas que operam, os metaprogramas. Um sistema tão complexo de programação que, quando for consumado, será invisível para qualquer um inserido dentro dele, e que só pode ser observado agora porque ainda está no início.
Mesmo longe de querer inflar o “poder” do design sobre as pessoas, ainda é verdade que se um dia eu criei a
é porque eu acredito que existe uma parcela de pessoas - os criadores - que moldam o mundo, de certa forma. Somos responsáveis pelo que criamos, pro bem ou pro mal. Mas não acho que os usuários sejam tão “controlados” assim - embora haja muitos dispositivos de controle operando, sobretudo na vida digital, não é impossível resistir a eles. Podemos declinar o uso de uma determinada plataforma ou serviço. Isso pode trazer consequências indesejáveis, fomo, perda de visbilidade, etc - mas no fim, a decisão de se retirar existe. A visão de que esses mecanismos são imparáveis nos torna em certa medida resignados - mesmo quando não devemos ser.O que quero dizer é que é mais fácil apontar o dedo e criar um Hall of Shame para padrões enganosos do que observar toda a prática criativa como uma responsabilidade social real. A linha é tênue entre se sentir poderoso demais - tenho colegas que gostam do termo “deusigner” para criticar designers que acham que sabem de tudo - e subestimar a própria parcela de responsabilidade na construção da realidade.
Quando escrevo, escolho cada palavra pensando em como convencer você a chegar até o final de toda frase. Quando crio o layout de um anúncio ou um banner promocional, sei que meus clientes esperam que a peça gere desejo de compra em seus clientes também. Com sorte, nossas criações sempre chegarão em outras pessoas, e somos responsáveis por programar essa recepção. Estamos sempre tentando chegar em algum lugar, e descrever nossos objetivos pode ser um primeiro passo para uma prática mais transparente de criação.
🤔 O que fazer?
Uma vez consciente da responsabilidade que temos enquanto criadores - de sistemas, de textos, de arte, de interfaces - o que fazer? Nenhuma resposta poderia esgotar as abordagens possíveis, mas refletir sobre o assunto pode ajudar; bem como observar nossas interações cotidianas (principalmente as que temos com empresas) com um pouco mais de atenção - afinal, todo designer em algum momento é também um usuário.
Para além dos padrões obscuros mencionados, há uma série de “regrinhas” de design empregadas para diminuir o esforço do usuário em cada tomada de decisão, e isso é visto como uma boa prática no contexto digital. Falei mais sobre isso na edição #38: a culpa é do design: vício em redes sociais. O quanto a facilitação de uma experiência pode estar sendo responsável por algum tipo de manipulação de decisões dos usuários? Mas espera, uma das funções do design não é justamente criar uma jornada desejável para um produto? Não são perguntas simples, e tentativa de respondê-las deve ser recorrente; idealmente, elas devem aparecer em cada etapa de cada projeto de design, num esforço contínuo de considerar os usuários como pessoas reais e não apenas indivíduos que queremos cumprindo uma tarefa X.
Conhecer melhor os processos humanos de tomada de decisão pode ser um caminho. Enviesados: Psicologia e Vieses Cognitivos no Design para criar produtos e serviços que ajudam usuários a tomarem melhores decisões (ufa?), do Rian Dutra, como o nome sugere, descreve os principais vieses cognitivos que afetam nosso comportamento como usuários; a linguagem do livro é bastante amigável e o texto se apoia em muitos exemplos, o que ajuda a sair um pouco da abstração. O clássico Não me faça pensar de Steven Krug (apesar de partir quase que do lado oposto dessa edição) é outro título que aborda o comportamento do usuário de forma bastante prática, com cases que rendem bastante material para refletir sobre.
Por fim, eu tentaria não ignorar a carga filosófica da questão. Por mais entediante que isso pareça, é impossível exercer uma prática do design consciente sem tentar entender o papel dos criadores na manutenção ou transformação das práticas sociais pra além das telas projetadas no Figma. Vilém Flusser (1940-1991) nos deixou um legado riquíssimo em filosofia do design e da comunicação, e a coletânea O Mundo Codificado traz ensaios sobre o assunto que parecem tirados de uma bola de cristal - ele parece estar escrevendo diretamente de 2024, e não dos anos 1990.
E você, tem alguma sugestão sobre o tema? Compartilhe comigo e outros leitores nos comentários quando quiser :)
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obrigada por ler até aqui! como sempre, fique a vontade para responder esse e-mail se quiser conversar, compartilhar algo ou até mesmo criticar algum ponto da newsletter. minha intenção nunca vai ser esgotar qualquer discussão, e adoro quando edições se tornam conversas. ah, e se você conhece alguém que pode gostar desse texto, compartilhe a newsletter :)
fico lisongeado em ser citado <3 e feliz em ser o estopim pra essa discussão interessantíssima. Em tempo: eu prefiro o termo "deceptive patterns" pois tento tirar o "dark" como pejorativo da minha linguagem.
Ótimo texto! Pensei no designer como o construtor de estradas, com desvios e retornos e nem por isso eles dominam nossos caminhos. Mas isto é apenas um simples contraponto.