#54 lixo digital
algumas reflexões soltas porque não dou conta de ser esperta sempre | tempo de leitura: 8 minutos
desde que escrevi a edição 48, que falou sobre reparos e descarte, fiquei pensando sobre a dimensão digital do lixo. escrevi, escrevi e sinto que pensei pouco sobre design nessa edição. quer dizer - eu tenho certeza que designers e outros criadores deviam pensar sobre isso, mas não tenho nenhuma reflexão prática, só alguns pontos sobre o assunto. mas não dá pra chegar numa resposta sempre. vamos?
ℹ️ uma quantidade inimaginável de informação
Pra que servem os números, senão para impressionar? Em abril de 2023 a internet contava com mais de 5 bilhões de usuários, mais de 60% da população mundial total. Desses, pelo menos 4,8 bilhões estão em alguma rede social. É gente pra caramba, gerando e publicando informação o tempo todo. Em um minuto, são publicados 350 mil tweets (xeets?), 66 mil fotos e vídeos no Instagram, 2.500 vídeos (somando 183 HORAS) no Youtube e 16 mil vídeos no TikToks. Alguns desses conteúdos viralizam, outros não são vistos por ninguém. Provavelmente muitos são deletados pelos próprios usuários depois de algum tempo. Mas não muda o fato de que o caldo da sopa da internet está cada vez mais grosso.
🪡 as linhas estão borradas
Em termos de informação (e talvez de entendimento da nossa sociedade por um historiador do futuro (aliás, coitado desse cara)), na esfera digital meio que tanto faz se o que é armazenado é um artigo renomado sobre neurociência ou um tweet ofensivo direcionado a uma subcelebridade. No fim, tudo isso são “dados”, e por mais que existam algumas maneiras formais de categorizar conteúdo (seja através das tags, metadados ou até mesmo por formato, como tweets vs. artigos), às vezes elas me parecem insuficientes.
É que hoje em dia tweets de personalidades políticas podem ser encarados como movimentos diplomáticos (ou antidiplomáticos), registro histórico e até provas de algum crime. Têm uma cara de documentação histórica. Ao mesmo tempo, um assunto em alta no twitter agora é o novo album da Luisa Sonza; todo dia vários tweets sobre isso são publicados, muitos deles falando as mesmas coisas, repetindo as mesmas piadas. E por mais inúteis que pareçam, essas publicações também marcam um certo momento e registram hábitos culturais de uma população.
Eu não acredito nessa separação que algumas pessoas ainda fazem entre espaço digital e espaço físico. O que rola na internet é super real: as pessoas trabalham, produzem arte, aprendem, cometem crimes, se articulam politicamente, conversam, planejam ataques às sedes dos Três Poderes, etc - tudo online. Nada disso está realmente separado do que acontece no espaço offline.
🦜 a síndrome do eu-preciso-falar-disso
Quando penso especificamente em redes sociais, me lembro de Falso Espelho, da Jia Tolentino. No primeiro ensaio do livro, O eu na internet (um dos meus preferidos) ela escreve o seguinte:
A internet é um meio em que o incentivo à performance é inerente. No mundo real, você pode simplesmente andar por aí vivendo a vida enquanto as outras pessoas olham para você. Mas, na internet, você não pode só andar por aí e ser visível; para que os outros o vejam, você precisa agir, precisa se comunicar caso deseje manter uma presença virtual. E uma vez que as plataformas mais relevantes são construídas em torno de perfis pessoais, pode parecer — primeiro em nível mecânico, depois como um instinto codificado — que o principal objetivo dessa comunicação é fazer com que você pareça interessante. Os mecanismos de recompensa online imploram para substituir os offline, e então os ultrapassam.
É por isso que todo mundo tenta parecer tão lindo e viajado no Instagram; é por isso que todo mundo se comporta de forma tão orgulhosa e triunfante no Facebook; é por isso que, no Twitter, fazer uma declaração política justa, para muitas pessoas, tornou-se um bem político em si mesmo.
Ou seja, na visão de Jia, a própria estrutura da internet que centrada em “perfis pessoais” incentiva as pessoas a estarem sempre postando, compartilhando, registrando e publicando o que quer que seja - de fotos de viagem a comentários sobre a última crise política. Talvez tenha sido por isso que a Rafa Kalimann se sentiu na necessidade de explicar a guerra na Ucrânia, sei lá.
Mas ela não foi a primeira e nem seria a última, e política não é o único assunto sobre o qual todo mundo na internet está sujeito a postar sobre enquanto tenta ser visto. O escritor Jorge Grimberg falou sobre isso em um vídeo, descrevendo o fenômeno que ele chama de “mediocridade digital”. Na ânsia de participar de todas as conversas, quantas pessoas ou instituições não acabam reproduzindo mais do mesmo, soterrando qualquer coisa mais relevante que poderia estar sendo vista?
🚯 medo de jogar fora e precisar depois
Mas ok, o “lixo digital” não está só no que é postado por aí. Tem muiiito mais: fotos antigas, arquivos duplicados, e-mails de 7 anos atrás que temos medo de deletar porque vai que eu preciso disso um dia!
Quantos prints você tira por semana? Quantas fotos em um mês? Quantos posts você salva pra ler depois - e o quanto disso tudo você de fato retorna pra olhar? Admito que eu não sou tão apegada, e às vezes quando preciso de mais espaço livre no celular só vou na pasta de prints e apago todos sem nem olhar. Mas sempre acabo enchendo ela de novo em pouquíssimo tempo. Algum dia preciso parar e ver o que tenho no computador, no celular, do mesmo jeito que às vezes a gente arruma o armário ou as gavetas de documento. Mas só de pensar na quantidade de coisas…
Esse post do portal The Summer Hunter traz ainda uma outra perspectiva, a ambiental. A poluição digital tem reflexos na crise climática, offline: a internet e seus sistemas de suporte produzem mais de 900 milhões de toneladas de CO2 por ano, e estudos indicam que em 2030 a internet consumirá 20% de toda a energia do mundo. Eu vou deixar meus dois centavos e dizer que, assim como a maioria dos problemas ambientais, a atividade das pessoas físicas deve ser muito pequena comparada a das empresas - mas o acúmulo desses arquivos segue sendo um problema pras nossas cabeças de qualquer forma.
📜 um problema dos historiadores do futuro
Até aqui, fiz algumas pontuações sobre nossos hábitos individuais (apesar de existir todo um sistema social, claro). O que eu posto, os dados que eu crio, o que eu acumulo e o que eu deleto. Mas e em um nível global? Geracional?
Coube às gerações anteriores decidir o que preservar e guardar nas bibliotecas e o que deixar se perder no tempo. Nem sempre de forma justa - hoje sabemos o quanto essa curadoria foi afetada por muitos tipos de preconceito, processos de aculturação e genocídio. A decisão de quais histórias merecem ser contadas e passadas adiante sempre foi muito complexa, e se já foi muito difícil antes, imagina agora?
Provavelmente a maior iniciativa nesse sentido é o Internet Archive, um projeto sem fins lucrativos dedicado a registrar páginas públicas da web, incluindo filmes, softwares, livros, músicas e sites.
Tal como uma biblioteca de papel, oferecemos acesso gratuito a investigadores, historiadores, acadêmicos, pessoas com dificuldades de leitura de texto impresso e ao público em geral. Nossa missão é fornecer acesso universal a todo o conhecimento.
Começamos em 1996 arquivando a própria Internet, um meio que estava apenas começando a crescer em uso. Tal como os jornais, o conteúdo publicado na web era efémero – mas, ao contrário dos jornais, ninguém o guardava. (About the Internet Archive)
Uma das ferramentas do site é o Wayback Machine, que permite acessar versões antigas e páginas deletadas de websites. Eu já usei em algumas edições da makers, pra checar informações que eu achava que estavam perdidas. Mas como é um projeto com base em trabalho majoritariamente voluntário, nem tudo é arquivado - eu não consegui achar meu primeiro blog, que mantive publicado entre 2009 e 2011, por exemplo; mas achei os de algumas amigas da mesma época (e foi muito legal ver hahaha).
De qualquer forma, não deixa de ser uma iniciativa muito importante em termos de registro e historiografia. Ah, e se você está se perguntando se tem alguma página antiga sua na Wayback Machine, você pode pesquisar no arquivo ou ler essa página de FAQ que explica quais páginas são registradas ou não.
Em menor escala, a @gobackto505 no twitter há anos mantém threads em que registra todos os dias qual é o assunto do momento no twitter. Se quiser acessar a thread de 2023, tá aqui. Se não fosse esse trabalho muito meticuloso eu jamais seria capaz de me lembrar que no dia 24 de fevereiro o pessoal estava discutindo se a Elize Matsunaga pode ser uber ou não.
O único contra desse método é que quando o Elon Musk deletar o twitter vamos perder tudo, né? Mas isso é um problema dos historiadores do futuro.
obrigada por ter lido até aqui! o que você achou desse formato com pontos mais soltinhos? fique a vontade para responder esse e-mail - espero que esse possa sempre ser um espaço de troca. e se você gostou da edição, compartilhe com alguém que vai aproveitar essa leitura também :)
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