#49 design para todos ou por todos?
alguns pontos para pensar sobre design inclusivo | tempo de leitura: 8 minutos
escrevi sobre design e acessibilidade na primeira edição da newsletter, há quase um ano. falei sobre como a acessibilidade ainda é expressivamente escassa em projetos de design e como muitos designers sem deficiência se sentem heroicos ao buscar “soluções inovadoras” para pessoas com deficiência, mas falham em ouvir seus usuários em potencial e entender suas reais necessidades. de lá até aqui sinto que pouca coisa mudou; mas conheci novos autores e pontos de vista sobre o assunto. sem nenhuma pretensão de esgotar o tema ou encontrar soluções certeiras, na edição de hoje proponho algumas perguntas e arrisco algumas sugestões. vamos?
no início de agosto a makers gonna make completa um ano e pensei em fazer uma edição especial respondendo perguntas dos inscritos. pra deixar a sua pergunta é só preencher esse forms - pode ser anônimo!
♿ Design inclusivo e o problema de uma definição unificadora
Por que falamos de design inclusivo como uma coisa só, quando pessoas com deficiências diferentes têm dificuldades e necessidades diferentes? É fácil constatar que uma pessoa com baixa visão e uma pessoa que teve os braços amputados enfrentam desafios diferentes em suas rotinas. Ambas podem enfrentar dificuldades ao se relacionar com um mesmo artefato, como um totem do McDonalds para a compra de um lanche; mas mesmo assim, ainda seriam questões diferentes entre si (dificuldade de leitura e dificuldade para tocar no totem, por exemplo), com soluções de acessibilidade distintas.
Em um artigo publicado no UX Collective Brasil, “Design inclusivo para quem?”, Janaína Moreira fala sobre como as expressões “acessibilidade” e “design para todos” podem ser esvaziadas quando partimos de definições abstratas demais e que tentam abarcar tudo de uma vez - afinal, ter como referencial um grupo tão grande como “todas as pessoas”, “o máximo de usuários possíveis” ou ainda “os usuários mais diversos possíveis” ignora a própria diversidade das pessoas com deficiência (e de outros grupos também). Janaína escreve:
Projetar para “todas as pessoas”. Mas, ainda assim, quem é “todo mundo”?
E quem tem lugar de fala ao projetar para esse “todo mundo”?
E principalmente, por que pessoas que tem lugar de fala nunca são incluídas? E se são, por que nunca estão ao centro ou a frente desses processos?
É preciso estarmos cientes que ter empatia pelos outros, testar nosso trabalho e obter perspectivas de diversas populações é importante, mas nunca saberemos todas as perguntas a serem feitas ou experiências a serem consideradas.
Mas é claro que a solução mais promissora - incluir pessoas com deficiência nos processos de design - não pode ser resolvida de maneira simples ou rápida. Se você já sabe alguma coisa sobre acessibilidade no design, pode já ter se deparado com um argumento mais ou menos assim: “ao projetar para uma pessoa que teve um braço amputado, você também está projetando para alguém com um braço quebrado temporariamente ou uma pessoa com as mão ocupadas, carregando uma criança”. Ok, isso faz algum sentido - afinal, todas essas pessoas estão, por algum motivo, impedidas de usar um braço. Mas uma inconveniência temporária como estar com as mãos ocupadas não pode ser comparada de forma tão rasa com uma deficiência permanente porque ignora o contexto social e político de uma população que é sistematicamente oprimida e excluída de muitos ambientes. Não é necessariamente uma premissa errada, mas é insuficiente para falar de design inclusivo.
💭 Problema complexo = solução complexa
Essa exclusão estrutural das pessoas com deficiência - que não se resolve pedindo pra outra pessoa segurar o bebê por uns minutinhos - gera impasses sucessivos que minam a sua participação efetiva em muitas iniciativas de design. Não encontrei nenhum estudo ou pesquisa que mapeia a atuação de pessoas com deficiência na área do design especificamente, mas dados da Relação Anual de Informações Sociais de 2018 apontam que pessoas com deficiência ocupavam cerca de 1% dos empregos formais naquele ano; e de acordo com os dados do Censo da Educação Superior, também de 2018, apenas 0,6% do total dos estudantes declarou alguma deficiência, transtorno global do desenvolvimento ou altas habilidades/superdotação. Em 2021, a Pesquisa Nacional de Saúdo do IBGE apontou que 8,4%1 da população brasileira convive com algum tipo de deficiência - ou seja, a conta não fecha.
A dificuldade de acesso de pessoas com deficiência à educação superior e ao mercado de trabalho faz com que as equipes de criação e de projeto sejam menos diversas; e em um movimento bastante oportunista, alguns designers sem deficiência identificam a lacuna e tentam se posicionar de forma “heroica” e inovadora tocando projetos baseados em “acessibilidade”. É uma narrativa parecida com a do salvador branco. Acontece que, sem a participação dos reais usuários que seriam afetados por esse tipo de projeto, são produzidos disability dongles, ou “bugigangas de acessibilidade”.
Liz Jackson é a cunhadora desse termo e fundadora da Disabled List, uma organização que promove a inovação no design com pessoas com deficiência, e não só para elas. Liz conta em um artigo no blog Platypus:
Criei o termo “Disability Dongle” em 2019 para chamar a atenção para o fenômeno dos estudantes e profissionais de design e engenharia que prototipam soluções “inovadoras” para deficiências. A definição satiriza um resultado em que projetos ou tecnologias “para” pessoas com deficiência atraem a atenção e elogios convencionais, apesar das preocupações válidas que as pessoas com deficiência têm sobre eles.
No artigo completo em que explica o termo, ela traz exemplos reais de inovações que ninguém pediu e ninguém precisa, mas algum designer sem deficiência insiste em vender como uma solução milagrosa que muitas vezes poderia “consertar” alguma deficiência ao invés de efetivamente questionar a opressão contra essa população. As práticas desse tipo de projeto são ineficientes e até desrespeitosas, como realizar testes de usuários “cegos” com pessoas sem deficiência visual com os olhos tampados por vendas. Os disability dongles são uma consequência direta de um mercado pouco inclusivo, reflexo de uma sociedade que na maioria das vezes só empodera pessoas com deficiência através de histórias melodramáticas de superação e salvamento - que, claro, não contribuem muito para melhorar a percepção de igualdade. Designers sem deficiência esperam atenção, premiações e bajulação por projetos que, muitas vezes, nem contam com qualquer pessoa com deficiência na equipe - nem designer e nem não-designer.
Mas existe uma outra forma de envolver pessoas com deficiência nos processos de criação: o design participativo, ou co-criação, que envolve não-designers no processo projetual. Práticas como se colocar em um lugar de escuta e convidar pessoas com diferentes deficiências a participar de testes de usuário, de grupos focais, de pesquisas de opinião e etc são perfeitamente fazíveis, e deviam estar numa posição mais alta na lista de prioridades das empresas. Em seu livro Design como Storytelling, Ellen Lupton fala um pouco sobre a co-criação como ferramenta de design:
Atividades de co-criação vão desde a avaliação de soluções existentes até a geração de novas ideias. Na co-criação, os designers trabalham com os usuários para entender o contexto do projeto e entender como novas soluções podem melhorar a vida das pessoas. Quando usuários desempenham um papel ativo no processo de design, eles são considerados peritos especializados em uma tarefa ou problema humano. Uma série de exercícios — desde grupos focais até sessões de brainstorming — ajudam a provocar discussões, simular o processo de pensamento criativo e construir empatia entre designers e usuários.
Trazer usuários diversos para o processo de co-criação de design pode ser uma forma de diminuir o problema da falta de acessibilidade, que é muito expressivo. Só para ter uma ideia, uma pesquisa de 2021 da Web Para Todos mostrou que menos de 1% dos sites brasileiros são considerados acessíveis.
Mas acessível com base em quais diretrizes? Para acessibilidade na web, um importante material de referência são as Web Content Accessibility Guidelines, traduzidas para o português e explicadas por Marcelo Sales no Guia WCAG. Marcelo também participou, junto com Talita Pagani, da criação de um módulo sobre Design Inclusivo na plataforma da designer Itamara Ferreira. O módulo pode ser acessado gratuitamente, mesmo para quem não for aluno dos cursos da Itamara.
Com o desenvolvimento e divulgação de mais materiais sobre design inclusivo, acredito que podemos pensar um pouco menos em um design para todos e pensar um pouco mais em um design por todos.
Pra fechar a edição, vou deixar algumas recomendações de pessoas e portais para acompanhar a respeito desse tema (algumas que inclusive citei na edição):
Liz Jackson, fundadora da Disabled List (Medium)
Gustavo Torniero, colunista do Terra Byte na área de acessibilidade e tecnologia (Coluna)
Janaína Moreira, Acessibility DesignOps no Itaú (Medium)
Marcelo Sales, designer com foco em acessibilidade digital (Medium) (Guia WCAG)
O portal UX Design Colletive, que publica artigos de vários autores sobre o tema
O portal Eye on Design, que tem foco editorial em design e diversidade
Quer recomendar mais alguém? É só deixar um comentário :)
⚠️ importante: a makers vai mudar ⚠️
a partir de agosto de 2023, a makers gonna make vai adotar um modelo de conteúdo um pouco diferente:
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obrigada por ler até aqui :) além dos pontos que levantei, não podemos minimizar o impacto de acompanhar pessoas diversas mesmo que não falem necessariamente sobre a opressão que sofrem. afinal, pessoas com deficiência (e de outros grupos oprimidos) não têm nenhuma obrigação individual de educar ou conscientizar pessoas sem deficiência; esse deve ser um esforço coletivo. e você, o que acha? fique a vontade para responder esse e-mail - espero que esse possa sempre ser um espaço de troca. e se você gostou da edição, compartilhe com alguém que vai aproveitar essa leitura também :)
O Censo de 2010 do IBGE (o penúltimo) trazia a informação de que 45 milhões de brasileiros tinham alguma deficiência, o que é mais do que 20% da população. Esse número segue sendo utilizado em materiais recentes. Mas, entre essa pesquisa e as mais recentes, o critério de quantificação da pesquisa mudou. Como eu não entendo tanto assim de pesquisa e nem de estatística achei que valia a nota.
edição incrível! aproveito pra deixar mais alguns links legais:
Access Guide (https://www.accessguide.io)
Um guia amigável à acessibilidade
W3C Brasil: Cartilha Acessibilidade na Web (https://ceweb.br/cartilhas/cartilha-w3cbr-acessibilidade-web-fasciculo-I.html)
Common accessibility issues that you can fix today (https://hidde.blog/common-a11y-issues)
Itens simples que podem ser ajustados na web pra serem mais inclusivos
Giving a damn about accessibility (https://www.accessibility.uxdesign.cc)
Um handbook para designers criado em parceria com a escritora de acessibilidade mais prolífica do UX Collective, Sheri Byrne-Haber
Mitos de Acessibilidade (https://a11ymyths.com/pt-br/)
22 mitos refutados
The A11Y Project (https://www.a11yproject.com/resources/)
Vários recursos sobre acessibilidade
Mais uma excelente edição, Helena! Parabéns!!!