#41 o que é mais icônico que um ícone?
de onde vem o estilo gráfico adotado de placas de sinalização a infográficos | tempo de leitura: 7 minutos
olá, esse é mais um história das coisas. a última edição da makers de cada mês é dedicada a explorar a história e o legado de obras de design que eu considero icônicas. o sistema Isotype há um século vem influenciando a visualização de informação em um nível mundial, incluindo os padrões internacionais vigentes. é uma hegemonia impressionante, mas de onde ela veio?
🚮 A influência do Isotype no nosso cotidiano
Antes de mergulhar na história do sistema Isotype, quero te mostrar que você já sabe da importância dele. Já reparou que a maioria esmagadora das placas de sinalização brasileiras tem mais ou menos o mesmo estilo gráfico? Pictogramas simplificados, cores chapadas, ausência de detalhes, composição geométrica... O Brasil adota o sistema ISO 7001, o padrão internacional para pictogramas e símbolos utilizados para informação pública. Esse sistema, criado em 1980 e atualizado anualmente, só existe como ele existe por causa do Isotype, desenvolvido seis décadas antes por Otto Neurath, Marie Reidemeister e Gerd Arntz. Desde sua criação, o Isotype pautou a produção de informação visual para fins instrucionais e educativos, e já estamos tão acostumados com suas regras de representação que ela nos parece óbvia e inevitável - mas ela foi cuidadosamente trabalhada e melhorada por seus criadores.
🚼 A origem do sistema Isotype
Apesar de ser corriqueiramente atribuído a Otto Neurath, o sistema Isotype foi desenvolvido na década de 1920 por uma equipe1 no Museu Social e Econômico de Viena e teve a coordenação de mais duas pessoas: Gerd Arntz, o ilustrador dos pictogramas, e Marie Reidemeister2, a transformadora. O termo “transformadora” foi utilizado na época para descrever o trabalho do design de informação. Marie era a chefe da equipe responsável por transformar os dados estatísticos e científicos em representações envolventes compostas pelos ícones de Gerd; afinal, os ícones sozinhos não representam muita coisa: é preciso criar relações entre eles para que comuniquem informação.
O objetivo desse trabalho era ilustrar uma exposição sem artefatos físicos ou obras de arte, mas uma exposição de conhecimento, como explica Ellen Lupton:
“Otto Neurath via os museus como livros “explodidos” e os livros como exposições portáteis. Ele argumentou que os museus precisavam adotar os princípios da mídia de massa, seguindo o exemplo das revistas, filmes e anúncios que dominavam a vida urbana. Nesse novo mundo de estímulos visuais constantes, o espetáculo e o entretenimento substituíram a leitura e a contemplação. Educar o público exigia a absorção das táticas da cultura comercial mais ampla.”
Assim surge o Método Pictórico Estatístico Vienense (Marie só sugeriu o nome Isotype em 1935), com o objetivo de “dar vida à estatísticas mortas” e potencializar a educação da população. A partir da filosofia de “visualização” desenvolvida por Otto, Marie Reidemeister transformava os dados disponíveis em conjuntos de pictogramas autoexplicativos e fáceis de assimilar e se lembrar. A simplicidade dos ícones desenvolvidos por Gerd Arntz foi essencial: um dos lemas do Museu Social e Econômico era “é melhor se lembrar de figuras simplificadas do que se esquecer de figuras precisas”.
Para decidir quais elementos seriam representados, a equipe se baseou no trabalho do filósofo Charles Kay Ogden, que propôs uma lista de 850 palavras do inglês que seriam “essenciais” para compreender a língua e podiam ser aprendidas em alguns dias. O sistema não era composto apenas pelos ícones, mas também por regras de representação como por exemplo o uso de múltiplos ícones - e não de ícones maiores - para representar quantidades.
A educação através da visualização de pictogramas se tornou o trabalho da vida de Marie e Otto. Além das exposições para museus e produção de livros para o público geral, em 1942 eles fundaram o Instituto Isotype, em Oxford. Juntos eles desenvolveram livros infantis sobre ciências e, após a morte de Otto em 1945, Marie continuou seu trabalho em Londres até o final dos anos 1960. Ela dirigiu uma equipe de escritores e ilustradores que produziu mais de oitenta livros infantis educativos.
🗺️ A adoção de princípios de representação “universais”
Com o sucesso do método em Viena, a equipe produziu trabalhos para outros países da Europa e tinha a pretensão de que o Isotype se tornasse universal. O próprio Otto Neurath afirmou que “figuras cujos detalhes são claros a todos estão livres das limitações da linguagem: são internacionais”. Mas é muito complicado falar de neutralidade e objetividade no design. Conforme aponta Ruben Pater no livro Políticas do Design:
“Devemos lembrar que a Isotype foi uma invenção europeia do período colonial. Só então fica claro que a retórica “objetiva” e “neutra” da Isotype significava representar padrões colonialistas. Nos exemplos, países não europeus eram agrupados na categoria “outros”. Raças foram reduzidas a cinco, com a branca em primeiro lugar e as não brancas como secundárias, retratadas como figuras escuras, sem camisa, com trajes tradicionais. É claro que a Isotype não era neutra nem objetiva, mas a qualidade técnica e a consistência do projeto tiveram forte influência no design de ícones e de informação ao longo das décadas seguintes.”
Os sistemas posteriores influenciados pela técnica do Isotype não fizeram muito para melhorar a questão dos estereótipos. O próprio Ruben Parter comenta, no mesmo livro, sobre como o ISO 7001 está longe de ser realmente “internacional”, já que usa (entre outros exemplos) garfo e faca pra representar alimentação, e muitos países comem de outras formas, com outros instrumentos.
Em sinalizações de segurança e espaciais, ficamos só com aquele bonequinho geométrico, sem chapéu (e portanto, de acordo com o Isotype, sem marcação racial, hahah). Isso não quer dizer que a representação deixa de ser racista, mas enfim, sinalizações de “escada de emergência” não costumam abordar esse aspecto. Mas surge também o bonequinho de vestido para designar mulheres, e é claro que a pergunta “esse bonequinho vai ter vestido ou calça?” é quase sempre respondida com base em estereótipos de gênero.
🚻 Uma revolução de design
É legal constatar que o Isotype não foi uma invenção de uma vez só, mas um trabalho constantemente melhorado e atualizado ao longo de décadas. Apesar das suas limitações e do contexto colonial e seus reflexos, o sistema se popularizou a ponto de hoje parecer óbvio e adequado para a maioria das pessoas que tem contato com ele - mas nem sempre foi. A equipe do Isotype foi responsável por uma verdadeira revolução no campo da visualização (que ainda nem era nomeado dessa forma). Quero fechar a edição com um trecho do prefácio de Ciências Visuais, um dos livros editados por Marie, que mostra um pouco desse processo de assimilação:
“Ao virar as páginas deste livro, você notará que ele usa mais imagens e menos palavras do que a maioria dos livros escolares que você já viu. Essas imagens, chamadas de gráficos Isotype, não pretendem mostrar exatamente como as coisas se parecem, mas fornecer informações sobre elas, como um mapa ou a planta de um engenheiro. Porque eles têm um trabalho incomum para fazer, eles são feitos de uma maneira incomum. Tudo o que não o ajudaria a entender o significado, ou o confundiria, é deixado de fora. As cores são usadas apenas para ajudar a tornar o significado mais claro, nunca simplesmente como enfeites. Isso significa que cada linha e cada cor nessas imagens tem algo a dizer.”
Eu encontrei algumas informações conflitantes em sites diferentes, e por isso decidi basear essa edição no que diz o artigo de Ellen Lupton sobre o Isotype no livro Iconic Designs: 50 stories about 50 designs, de 2014. O título dessa edição também é a frase de abertura do artigo :)
Marie e Otto trabalharam em colaboração por muitos anos. Em 1941 eles se casaram e Marie adotou o sobrenome Neurath; mas nessa edição prefiro me referir a ela por seu nome de solteira. A valorização da individualidade de cada criador e criadora é um princípio editorial da makers gonna make. Além disso, de qualquer forma, ela foi Marie Reidemeister durante mais de uma década de desenvolvimento do projeto.
Ótima edição Hele! Lembro de ter estudado linguística alguns anos atrás e ler um capítulo inteiro sobre como o Isotype é um sistema de escrita semasiografico, já que ele é o significado em si, não dá indícios de pronúncia e nem possui frases ou orações, lembro que achei muito interessante na época, mas nunca tinha parado para pensar no trabalho de design envolta deles. Voltei a ficar super interessado depois de ler essa edição 😅