#40 design vernacular, popular e brasileiro
e tudo que estiver no meio disso | tempo de leitura: 6 minutos
em setembro do ano passado eu participei do WikiDesign, um projeto de extensão para pesquisa e publicação de artigos sobre design na Wikipédia. eu e a Camylla ficamos responsáveis por escrever sobre design vernacular. nos últimos tempos acabei revisitando o tema e achei que seria legal escrever uma edição sobre isso, até expandindo um pouco o próprio conceito de vernacular a partir da minha pesquisa. vamos?
🖌️ O que é design vernacular?
Vernáculo significa “língua própria de um país ou de uma região”; no design, o termo vernacular costuma caracterizar uma prática não-acadêmica que é fruto de hábitos culturais ou necessidades de um determinado contexto cultural e socioeconômico, produzido muitas vezes por trabalhadores informais e buscando solucionar um problema ou limitação dos artefatos disponíveis1.
Isso quer dizer que o que é vernacular não é caracterizado por sua aparência, e sim por sua condição: onde surge, porque surge, com quais materiais é criado… É uma definição bem abstrata sem lançar mão de alguns exemplos, então vamos lá:
No design de produto, alguns bons exemplos são os artefatos criados por vendedores ambulantes nos centros urbanos.
São maletas, bolsas e carrinhos muitas vezes montados de acordo com aquilo que vai ser comercializado. Se precisa estar quente e não é pesado, como o queijo coalho na praia, pode ser uma caixa de metal com brasa e alças. Se precisa estar gelado, como um refrigerante, pode ser uma grande caixa de isopor sobre rodas. E o instrumento de trabalho pode ser caracterizado e customizado, como o carrinho de milho verde. Essas peças são vernaculares porque surgem das necessidades do contexto cultural e socioeconômico em que estão inseridas.
Já no design vernacular de comunicação, as estrelas são os murais, cartazes e letreiros.
Eu poderia passar alguns minutos fotografando cartazes pelo meu bairro ou buscando imagens no Google, mas o instagram handpaintedbrazil já faz uma curadoria incrível de fachadas, avisos e letreiros pintados a mão. Essa linguagem já é mais conhecida porque é muito usada no comércio popular. Outro exemplo são os cartazes de mercado. E eu acho importante dizer que apesar de não existir uma formação acadêmica, a profissão de letrista é ensinada e aprendida - ninguém nasce cartazista ou letrista, não é só chegar e fazer. As noções tipográficas de hierarquia, grid, espaçamento etc estão frequentemente incorporadas nesse tipo de trabalho.
🍚 O vernacular é sempre fruto do improviso?
Não. É fácil ver os exemplos acima - que são válidos - e começar a fazer associações com gambiarras e adaptações, mas nem sempre é assim. Entre um carrinho pra vender comida na rua feito totalmente na base da adaptação e uma cadeira de design modernista que custa milhares de reais existem, bem, milhões de outras coisas. Podem ser mais ou menos técnicas, sofisticadas, inventivas e etc, mas não dá pra ficar só nos dois extremos.
Um exemplo interessante nesse meio do caminho é o escorredor de arroz: ele foi inventado por Therezinha Beatriz Alves de Andrade Zorovich, uma dentista que estava insatisfeita com o desperdício e o possível entupimento do ralo da pia durante a lavagem dos grãos. Ela projetou um escorredor em formato de V com uma peneira na ponta. O desenho foi patenteado e o projeto vendido para as indústrias Trol, que passou a fabricá-los para o mercado. Esse é um caminho muito mais próximo do desenho industrial formal, mas não deixa de ser uma solução vernacular.
🪑 Traduzindo o Estilo Internacional para a nossa língua
Se vernáculo designa a língua falada em uma região, será que podemos falar em tradução no campo do design? Estive relendo alguns capítulos de Uma Introdução a História do Design, de Rafael Cardoso, e notei uma outra forma de design que, pra mim, também se encaixaria na definição de vernacular: o projeto traduzido para o brasileiro. E pensei nisso a partir dos móveis de Joaquim Tenreiro.
Tenreiro foi um marceneiro - profissão herdada da família - e projetista de móveis em diversas empresas no Rio de Janeiro, como a Laubisch & Hirth e a Leandro Martins & Cia. Esse é um contexto bastante formal da prática do design de móveis, já que a segunda era responsável pela produção e comercialização de móveis em escala industrial. Mas quando abriu sua própria empresa, uniu a racionalidade modernista do Estilo Internacional (parece contraditório com vernacular?) com materiais típicos da produção moveleira nacional: as madeiras de lei, como o jacarandá, e a famosa “palhinha”, cujos furos são muito bem vindos em países de clima quente.
Será que essa adaptação de um desenho mais “internacional” para o contexto e materiais brasileiros pode ser considerada vernacular? Eu acho que sim, mesmo com o seu alto nível técnico. Se os móveis de Tenreiro fossem produzidos em outro lugar, certamente não seriam os mesmos. Não estou tentando questionar a ideia do vernacular como algo popular - só não acho que o popular, o tradicional e o nacional estão assim tão isolados do fazer técnico.
🎓 A academia ignora o design vernacular?
A maioria das pessoas - eu inclusa - concorda que o ambiente acadêmico pode ser bastante elitista. Já tive colegas de sala perguntando: o design vernacular é tão rico, então porque não é estudado aqui2?
Acontece que ele é. Mesmo se quisermos olhar apenas para a produção vernacular informal, é importante não tratá-la como algo isolado: isso não faz bem nem pro design na academia e nem fora dela. Existem sim pessoas pesquisadoras que estão se empenhando na complexa tarefa de trazer essas referências para o repertório formal. Artefatos de vendedores ambulantes de São Paulo estão extensamente documentados no mestrado de Adriana Valese. Os estudos de Fátima Finizola sobre a tipografia vernacular urbana se tornaram um livro. Existem trabalhos que tentam entender a influência do vernacular na comunicação gráfica formal/digital, e projetos tipográficos inspirados nos letreiros populares, como a Brasilêro e a Abençoada. A segunda é parte de um projeto ainda maior, Pintores de Letras. O design formal pode olhar para o design vernacular com uma postura de escuta, de aprendizado, e isso tem sido feito, embora não tão amplamente divulgado. Essas são apenas algumas iniciativas, mas certamente há outras.
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ufa, obrigada por ler até aqui :) acho que senti mais falta da makers na semana passada do que quem lê, hahaha. como sempre, fique a vontade para responder esse e-mail se quiser conversar, compartilhar algo ou até mesmo criticar algum ponto da newsletter. espero que esse possa sempre ser um espaço de troca. até a próxima terça!
Esse parágrafo foi retirado da página da Wikipédia que eu ajudei a escrever através do projeto WikiDesign :)
Eu estudo na Esdi, o primeiro curso superior em Design do Brasil. A escola tem uma inspiração alemã e enfim, dá pra entender o ambiente que surge daí.
Eu amei esse texto e esse tema, Hele!
Amei o texto! Estou estudando e trabalhando com o mobiliário do Joaquim Tenreiro e incrível ver por esse espectro Vernacular a obra dele.