gravura 101: um mergulho na minha obsessão do momento
não tem subtítulo, é literalmente só isso | tempo de leitura: 8 minutos
oie! seja bem-vinde a mais uma edição da makers :) eu sou hele carmona, jornalista, designer e artista multimídia. algumas edições dessa newsletter são de pensar, mas essa aqui é uma edição de sentir. não sou nenhuma especialista em gravura, mas desde que comecei a compartilhar meus experimentos com a técnica no instagram e no tiktok recebi várias perguntas sobre ferramentas, técnica, como aprender.. e como é um assunto que ando mesmo interessada, pensei em transformar esse entusiasmo numa edição. vamos?
O que é gravura (e por que eu estou obcecada)
“Gravura” pode se referir tanto ao processo de gravar e imprimir quanto ao produto final impresso. A ideia geral é criar uma matriz a partir do entalhe de uma superfície e depois usar essa matriz pra imprimir seu desenho. A gravura se destaca entre outras técnicas pela possibilidade de reprodução meio que infinita do mesmo desenho, o que é muito interessante pra artistas e designers que pensam em vender prints do seu trabalho ou estão trabalhando em projetos de tiragem, como livros, revistas, zines etc. Outra coisa legal é que a matriz pode gerar uma impressão em diversos substratos: o mais comum é papel, mas você também pode usar uma matriz de gravura para estampar uma camiseta, uma bolsa…

Foi por causa da necessidade de reprodutibilidade que a gravura surgiu, na Ásia (provavelmente na China durante o século V, embora não haja consenso, de acordo com esse artigo), inicialmente com matrizes talhadas em madeira para imprimir orações budistas, jogos de carta e papel moeda. No ano 770, no Japão, foi feita a primeira impressão em massa: 1 milhão de cópias de um talismã búdico para distribuição popular; e o livro mais antigo datado é chinês, do século IX, uma oração budista ilustrada chamada Sutra Diamante. Assim como na Europa o primeiro grande livro impresso com tipos móveis foi a Bíblia de Gutenberg, na gravura o desenvolvimento e a difusão da técnica parecem ter tido bastante relação com a pregação religiosa local.
Os nomes dos tipos de gravura, como xilogravura, linogravura e calcogravura, são referentes ao material da matriz: xilogravura vem de xylon, madeira em grego; calcogravura vem de chalkos que sugnifica cobre, e designa a gravura feita em metal; e linogravura se refere a linóleo, um tipo de borracha. Em muitos lugares, a xilogravura se expandiu porque a madeira é um material mais acessível economicamente.
No Brasil, o tipo de gravura mais conhecido é a xilogravura que ilustra a literatura de cordel. Os folhetos de cordel eram inicialmente ilustrados com clichês de metal que reproduziam fotografias, mas isso dificultava a produção por ser uma técnica cara, enquanto os folhetos eram vendidos a alguns centavos. A xilogravura aparece como uma alternativa mais barata, e muitos dos poetas cordelistas ilustravam as próprias publicações.
Como começar na gravura? Algumas noções básicas
Como eu disse no começo da edição, sou iniciante, mas pelo menos isso quer dizer que eu já comecei, então sobre começar eu consigo falar, hehe. Eu ganhei um kit de gravura em 2023 e com ele eu fiz minha primeira gravura meio que intuitivamente, não vi tutoriais nem nada do tipo. De 2023 pra cá pode parecer bastante tempo, mas de lá pra cá eu só fiz umas 5 ou 6 gravuras (3 no último mês, hehe).
Duas noções são essenciais para planejar e fazer sua primeira gravura. Uma delas é a relação entre positivo e negativo. Onde você entalha (ou seja, RETIRA pedaços da matriz com suas ferramentas) é onde vai ser o “branco” na sua peça final, sem tinta. A partir disso, você pode decidir se quer criar imagens positivas ou negativas. Visualmente, o que eu acho mais legal na gravura é o jogo de preto e branco, tinta e vazio, figura e fundo.

A segunda noção importante é: você deve fazer sua matriz espelhada, de trás pra frente, pra ter uma impressão final no sentido correto de leitura. Pra fazer isso, eu recomendo criar sua arte-base em papel vegetal. Com o desenho finalizado, é só virar o papel e usar o outro lado como base para a matriz.

Sobre ferramentas:
Eu comecei a minha jornada na gravura com esse kit da Speedball. Não é a opção mais barata, mas foi um presente que ganhei no natal de 2023 e eu amei que ele vem com um bloco de linóleo (matriz), um kit de goivas (as ferramentas de entalhe), o rolinho e um tubo de tinta! Mas se você preferir comprar as ferramentas separadamente pra economizar, numa oficina que fiz em junho desse ano com a Agatha Maria no Sesc ela recomendou as goivas da Sakura.

A tinta é uma parte chatinha: você precisa usar tinta específica para gravura, que é uma tinta mais espessa. Eu já testei outras tintas, PVA, acrílica e tecido, e nenhuma delas funcionou, todas eram líquidas demais. Para imprimir em papel, eu prefiro usar tinta a base de água, que é muito mais fácil de limpar do rolinho e da matriz depois de imprimir; mas se você for fazer alguma peça como uma camiseta, por exemplo, que vai ser lavada, vai precisar usar uma tinta a base de óleo. Pra limpar esse tipo de tinta você vai precisar de solvente, o que é meio inconveniente, mas fazível (use luvas!).
Sobre as matrizes: linóleo é meio caro, e acho que só vale a pena se você tem em mente projetos que vão render várias peças, como prints, publicações ou camisetas pra vender (se for só pra você, talvez não valha a pena o investimento). A madeira é uma matriz mais acessível economicamente, mas pessoas com mais experiência já me falaram que é mais difícil de talhar e exige mais força física. Você pode pegar madeira até de entulho, desde que lixe a superfície para que ela fique reta: se a madeira não estiver nivelada, sua gravura não vai funcionar. Matrizes diferentes (mesmo duas madeiras do mesmo tipo) vão trazer texturas diferentes para a impressão final. Uma terceira opção são as borrachas escolares: baratas e fáceis de entalhar, a limitação delas é o tamanho reduzido… mas podem funcionar bem pra desenhos modulares e pra pequenos carimbos.
Artistas e designers para conhecer
Will Mower
Pros amantes de letras como eu, o trabalho do Will é uma delícia de ver. Ele explora bastante a modularidade nos seus projetos, trabalhando com vários carimbos de peças geométricas para formar figuras complexas. Em 2024, ele lançou o Blockface Kit, um kit de carimbos pra explorar tipografia modular. Will não é um gravador tradicional, já que pelas fotos dá pra perceber que ele provavelmente usa corte a laser pra chegar nos formatos desejados em madeira e seu Blockface Kit é impresso em 3d. Mesmo assim, é uma inspiração irada pra quem curte trabalho modulares e tipografia.
Lygia Pape
Gente, eu juro que eu não sou burra, mas eu não fazia ideia de que a Lygia Pape era artista plástica. Eu já conhecia o trabalho dela em design gráfico, já que ela foi responsável pelas icônicas embalagens da Piraquê desenvolvidas nos anos 1960 e algumas se mantêm iguais até hoje. Foi pesquisando sobre a obra de outra gravadora, a Fayga Ostrower, que descobri que a Lygia tem uma extensa produção em gravura também. Com composições abstratas em várias cores, a série Tecelares foi a minha preferida.
David Schmitt
David é pintor e gravador baseado em Barcelona. Suas gravuras exploram muito as noções de positivo e negativo/dentro e fora/claro e escuro, o que eu acho muito forte na gravura porque valoriza o meio através do resultado. Os animais contidos uns nos outros, a interação simples e sólida entre texto e imagem, a ironia das composições, tudo isso me encantou :)
Mais das minhas experimentações
Além das gravuras que já mostrei ao longo da edição, eu aproveitei a oficina que fiz no Sesc para criar a matriz que vai estampar a capa da minha primeira publicação coletiva. E falando nela, hoje é o último dia pra enviar seu texto (ou rascunho) sobre design/criatividade & IA na chamada aberta. Tem mais informações sobre a publicação coletiva nesse post.
obrigada por ler até aqui! nessa edição testei um formato um pouco diferente, bem com cara de blog, e adoraria saber o que você achou. fique a vontade pra deixar um comentário ou responder esse e-mail pra trocar ideia! ah, e os links da amazon são links de associado, o que significa que se você comprar as ferramentas de gravura através deles, a makers recebe uma comissão — o que ajuda muito a manter o projeto rodando <3
pesquisa e texto por hele carmona [instagram | linkedin | tiktok]
eu amo gravura!!! conheci na faculdade e logo virou umandas minhas linguagens artísticas favoritas. eu sempre compro folhas de linóleo em lojas de sapateiro, que costumam fazer um valor mais acessível (mas são mais finas que o linóleo de lojas de arte). mas gravura dá pra fazer com quase qualquer coisa! aquelas bandejas de frios do mercado podem ser matrizes de poucas tiragens (é só afundar o desenho com uma tampa de caneta ou algo assim) e o interior da caixa de leite substitui bem a folha de metal na calcogravura (apesar que o método é diferente, por não envolver os ácidos que marcam o metal). o importante mesmo, como você falou, é ter a tinta certa. o resto dá pra ir testando e descobrindo o que funciona e o que cabe no bolso!
amei o conteúdo e queria deixar uma sugestão, sou formada em técnico em comunicação visual e fiz um trabalho de xilogravura com EVA e estilete kkkkkk não lembro como a impressão ficou 100%, mas lembro que deu certo e foi super bacana a experiência!! sou fã do seu trabalho!!!