tem uma coisa que eu não gosto muito de fazer, mas sempre faço mesmo assim: costurar minhas roupas sempre que começam a se desgastar. pode ser um rasgo expressivo (outro dia meu vestido enganchou num prego) ou um pontinho que começou a soltar. eu costumava usar linha da mesma cor da roupa e costurar com ponto invisível - obrigada, mãe, por me ensinar a fazer esse. mas há uns meses mudei de ideia e comecei a usar sempre linha colorida e fazer ponto chuleado (aquele igual o de sutura médica), um ponto visível – pra me lembrar que aquela é uma peça que foi consertada. por quê?
Veio a mim em sonho que algumas pessoas que já leram o Glifo por Glifo estão procrastinando os exercícios de escrita! Por isso pensei em uma oficina online e ao vivo chamada glifo por glifo write along. No dia 5 de julho, sábado, das 10h às 13h, vamos nos reunir para fazer alguns exercícios do livro, ler os textos e conversar sobre escrita e processo criativo. As inscrições estão abertas :) Te vejo lá?
🚮 O hábito do descarte
Quando vale a pena consertar um objeto ao invés de substituí-lo? Para responder a essa pergunta precisamos definir o que é valer a pena. Pra maioria das pessoas, “valer a pena” é sinônimo de economia financeira; e algumas vezes consertar uma peça de roupa ou um eletrônico é mais custoso do que adquirir um novo. Ou nós nos convencemos de que é: “nossa, mil reais pra trocar a tela? melhor comprar logo um celular novo” e o celular novo em questão é 3 mil reais mas tudo bem porque ele é novo, né? É uma economia mais percebida do que material.
O conceito de obsolescência programada – a ideia de que as empresas projetam e produzem mercadorias com “data” pra se tornarem obsoletos, forçando o consumidor a uma nova compra – já é difundido o suficiente pra que a gente simplesmente assuma que as coisas vão quebrar sozinhas, e muitas vezes o conserto nem passa pela nossa mente. Se algo foi projetado pra quebrar, de que adianta lutar contra isso? Da mesma forma, existem marcas exibindo o conceito de durabilidade como uma vantagem comercial, como se o “normal” fosse o descarte, e essa durabilidade fosse especial.
O que significa, então, adotar o hábito de consertar nossas coisas e prolongar sua vida útil, mesmo que isso seja mais trabalhoso do que simplesmente jogar fora e adquirir um novo? Talvez você se sinta melhor porque doa suas coisas ao invés de jogar fora, mas o quão genuinamente gentil é doar algo quebrado ou sem manutenção? Será que não é só um outro tipo de descarte (nesse caso, da responsabilidade de consertar)?
Há uma montanha de lixo no deserto do Atacama, no Chile, composta por roupas produzidas na China e em Bangladesh, e compradas, vestidas e então descartadas nos Estados Unidos ou na Europa. Uma pesquisa da Digital Turbine de 2022 mostrou que 41% dos brasileiros troca de celular sem nenhum motivo específico, apenas porque “está na hora de trocar”. Dados como esses mostram que o descarte é um hábito da sociedade capitalista muito antes de ser uma necessidade. Essa edição não é um discurso de culpabilização individual: se eu nunca mais comprar nenhuma peça de roupa, a montanha de lixo no deserto vai continuar a crescer. Não é sobre mim ou sobre você em particular. Mas o fato de ser um problema estrutural não tira minha autonomia de pensamento, e eu me sinto capaz de questionar essa lógica, e não apenas de forma prática, como algumas pessoas fazem de forma muito mais efetiva e radical do que eu poderia imaginar (a Cristal Muniz, do blog Uma Vida Sem Lixo, decidiu viver com lixo zero há quase 10 anos, e ela está conseguindo).
Como designer e uma pessoa que se importa com as coisas, eu não quero ver essa questão apenas de forma racional e lógica, mas também de forma emocional: os objetos que escolhi para serem meus me fazem feliz o suficiente para que eu queira consertá-los e mantê-los por perto? Como eu me sinto quando faço isso?
🏺 Kintsugi e o reparo como filosofia
Nem sempre uma peça reparada vai voltar a ter a mesma aparência de quando era nova. Isso é bom ou ruim? Kintsugi é uma técnica japonesa de reparo de peças de cerâmica que usa laca misturada com pó de ouro para colar os pedaços quebrados, tornando evidentes as partes emendadas.
Evidentemente, não é nem uma tentativa de obter de volta a aparência original do objeto e nem de economizar dinheiro. Kintsugi é uma arte: a peça reparada é valorizada não apenas pelo ouro, mas pelo trabalho do artesão. Paulo Hatanaka, restaurador e especialista em Kintsugi fala sobre essa filosofia e mostra um pouco do processo em um vídeo da Japan House:
Como erguer, quando um pedaço se vai?
Tatiane Freitas é artista visual e autora da série “My Old New”, uma obra sobre o tempo e a fluidez onde ela completa artefatos de madeira com acrílico transparente, evidenciando as partes que faltam. Pra mim, é uma espécie de Kintsugi atualizado - artefatos transformados em arte pelo reparo.
dois lembretes:
está rolando uma pesquisa com os assinantes da makers gonna make, que vai me ajudar a entender melhor quem lê a newsletter: de onde vocês são, com o que trabalham, que tipo de conteúdo consomem e como interagem com a publicação. Quem preencher até 13 de julho participa do sorteio de um exemplar do livro Design no Patriarcado.
há algumas semanas, abri uma chamada para envio de textos sobre design & inteligência artificial para compor a primeira publicação coletiva da hele press. envie seu texto ou rascunho até o dia 01 de julho! e se você conhece alguém que pode se interessar, compartilhe a chamada :)
🏭 O que o design pode fazer sobre isso?
Fui buscar uma sugestão de resposta para essa pergunta em um dos meus livros preferidos: Design para um mundo complexo, de Rafael Cardoso (já recomendei essa leitura algumas vezes, nas edições #8 e #39 da newsletter). Não há uma única abordagem para essa questão, e sim alguns caminhos que podemos buscar. No subcapítulo “O ciclo de vida do artefato”, Rafael diz que:
“Os designers não controlam políticas públicas, não comandam as redes de fabricação e nem são responsáveis pelo desenvolvimento de novos materiais e tecnologias. Além de descartar menos e reciclar mais –algo que está ao alcance de qualquer indivíduo, independente de sua profissão –pode parecer que há muito pouco a ser feito na hora de projetar. Um ou outro profissional pode se negar a gerar novos artefatos, alegando que não quer contribuir para o acúmulo de coisas no mundo, mas isso não vai impedir que outras pessoas o façam. Contudo, existem sim contribuições importantes que podem ser feitas na etapa do projeto, contanto que se entenda o ciclo de vida do produto de modo mais abrangente.”
O autor propõe que designers rompam com o “ciclo de vida do produto” como teoria de marketing, que prevê um declínio ou descarte, e adotem o ciclo de vida circular. Um ciclo que não termina depois do uso, mas que prevê um pós-uso, que pode se concretizar de muitas formas: o reparo (você projetou algo cuja manutenção é fácil?), a biodegradação (quais os materiais utilizados?), a desmontagem e reutilização das peças em outros produtos (o design modular é uma opção), a ressignificação da função (um vidro que um dia comportou uma vela aromática pode se tornar um porta-lápis), etc.
Não é fácil projetar para um futuro que não conhecemos, mas é preciso reconhecer que o descarte não é o fim de um objeto: ele vai continuar lá, mesmo que seja como lixo ou resíduo. Isso pode parecer que só vale para produtos materiais, mas não é verdade. A poluição informacional já é uma realidade com a qual vamos precisar lidar mais cedo ou mais tarde (mas esse tema daria uma outra edição que estou enrolando para escrever). O que você tem criado é descartável ou é perene?
obrigada por ter lido até aqui! esse é um dos meus textos preferidos que já escrevi, e foi originalmente enviado para cerca de mil inscritos em 2023. ainda costuro minhas roupas e me sinto cada vez mais apegada aos objetos que escolhi para serem meus… tento fazer o possível para que fiquem por perto tanto tempo quanto possível. e você? fique a vontade para responder esse e-mail - espero que esse possa sempre ser um espaço de troca. e se você gostou da edição, compartilhe com alguém que vai aproveitar essa leitura também :)
A aceitação desse ciclo de vida, não expandido, mas de constante transformação, requer uma visão mais wabi sabi da vida. Entender a beleza da "imperfeição" não atende a constante inadequação da nossa sociedade que não consegue apreciar o que há, apenas o que poderia ser. Para vivermos uma vida mais sustentável precisamos mais do que simples conscientização, precisamos desenvolver um novo senso estético.
eu tb sou um pessoa que gosta de remendar roupas, sempre faço a mão quando dá, senão levo na costureira. tb agradeço minha mãe por ter me ensinado a "arte" e minha filha tb já faz seus próprios consertos <3
minha filha cresceu com essa perspectiva, pois sempre q um brinquedo quebrava, eu arrumava, de algum jeito. tanto que sempre q isso acontecia ela sempre já trazia pra mim e ficava observando a minha "engenharia de reparo". enfim, eu vejo valor nisso. me agrada, me conforta. além de ser um tempo incrivelmente gostoso comigo mesma e desconectada de tudo. recomendo a prática ;-)