#88 pelo fim da solidão dos criativos
Um mini-manifesto + novidades!! | Tempo de leitura: 9 minutos
oie! seja bem-vinde a mais uma edição da makers :) eu sou hele carmona, jornalista, designer e artista multimídia. deixa eu perguntar: você que trabalha com criatividade ou se considera de alguma forma uma pessoa criativa… já se sentiu sozinha? uma solidão específica, como se ninguém entendesse seus problemas, os desafios que você enfrenta e a carga emocional que criar traz pra nossa vida? hoje eu tenho amigas que também criam, pessoas que admiro e tenho como exemplo, professores e mentores a quem recorrer em momentos de dúvida. mas eu passei muito tempo tentando entender porque a criatividade parecia tão solitária. nas últimas semanas me dediquei a esse tema e separei alguns pensamentos. vamos?
🍂 De onde vem a solidão dos criativos?
São dois fatores principais: o mito do lone genius, ou gênio solitário, originado nas artes plásticas mas que se expandiu para outros ofícios criativos; e a ideologia neoliberal, com formas de trabalho cada vez mais individualistas e isolantes.
Segundo Alfonso Montuori e Ronald E. Purser, autores do artigo Deconstructing the Lone Genius Myth: Toward a Contextual View of Creativity, a figura do Gênio Solitário surge na Renascença, quando de forma geral a arte deixou de ser uma ferramenta de adoração religiosa para se centrar no humano (e talvez tenha se centrado um pouco demais). Talvez o primeiro prejuízo imediato dessa concepção para a classe criativa seja o antagonismo criado entre o Artista e as Massas:
“Uma visão romantizada (e patologizada) e reducionista do gênio criativo estabelece uma relação fundamentalmente negativa entre indivíduo criativo e comunidade — o que perpetua ativamente exatamente os tipos de problemas estereotipados que essas pessoas acabam enfrentando.
(…) “É o destino do gênio ser pobre/incompreendido/esquisito/cheio de problemas/anti-social, e por aí vai.” Sim, criatividade e pessoas criativas podem ser tudo isso em certos momentos (assim como muitas pessoas que não são criativas), mas não por natureza.
Além disso, essa luta individual contra “as massas” nos impede de focar nos papéis — às vezes benéficos — da interação social e, mais importante ainda, na possibilidade de criar ambientes que incentivem a criatividade. Porque, nessa visão, a criatividade é vista unicamente como um fenômeno individual.”
O artigo é de 1995 e eu acho que os autores nem imaginavam o quanto o desenvolvimento do capitalismo intensificaria a ideia da criatividade como fenômeno individual (e solitário). Afinal, para o neoliberalismo, o que não é individual?
⏳ Como essa ideia se perpetua (e qual é o problema com isso)
São muitos motivos que podem fazer designers e outros profissionais criativos se sentirem sozinhos, a começar pelo modelo de trabalho: muitos atuam como freelancers e/ou de forma remota (sozinhos ou em times fragmentados geograficamente). A desmobilização da classe — que não é organizada e não atua em comunidade — e o culto ao empreendedorismo criativo também contribuem para a sensação de isolamento.
Como denuncia Silvio Lorusso em Emprecariado (2023), sob condições de trabalho cada vez mais desregulamentadas e com cada vez menos acesso a estruturas e direitos trabalhistas básicos, todos (na indústria criativa) nos tornamos empreendedores. Mas na prática, isso não quer dizer que somos donos de um empreendimento — e sim que todo o peso do sucesso (mais ainda, do fracasso) recai sobre o indivíduo, não sobre o contexto ou as instituições que o cercam. Esse cenário demonstra, entre outras coisas, uma acentuação do discurso a respeito do Gênio Solitário. Novamente, de Deconstructing the Lone Genius Myth:
“Robertson apontou que a maior parte dos indivíduos criativos veio das classes mais abastadas ou teve algum tipo de privilégio econômico, e que um enorme desperdício de talento criativo nas classes mais pobres vem sendo perpetuado pela crença de que o gênio surgirá independentemente das condições. As implicações políticas dessa questão, é claro, são significativas. Se partirmos do pressuposto de que o gênio emerge de qualquer forma, pouca ou nenhuma atenção precisa ser dada à criação de um ambiente de apoio — e educação ou políticas de bem-estar social deixam de fazer diferença. O argumento de que pessoas pobres não são tão criativas ou bem-sucedidas por causa de “deficiências de caráter”, como preguiça, burrice, inferioridade genética e afins, decorre com facilidade dessa visão de que a criatividade é um dom divino ou um talento genético que aparece não importa quais sejam as condições sociais.”
Essa ideia de que “o dom de criar” vem de dentro (ou do nada) ignora todos os aspectos sociais que influenciam a criatividade. Isso não é só prejudicial num nível individual (as pessoas ficam sozinhas e quando fracassam culpam a si mesmas, e não consideram que podem não estar em condições para a criatividade se desenvolver), ela também é prejudicial num nível social. Esse isolamento socioafetivo , além de minar o fazer criativo, desmobiliza a classe trabalhadora artística. Sem tanta troca e apoio entre os profissionais da criatividade, como eles podem lutar pelos direitos e condições para que a criatividade aflore? Como o artigo ainda reforça,
“Se, em vez de enxergar a criatividade como uma centelha que surge ex nihilo de um gênio criativo, ela for vista como resultado de, no mínimo, uma quantidade considerável de influências sociais (como professores, modelos de referência, colegas, pais, o contexto sociopolítico etc.), surge uma relação completamente diferente entre a pessoa e a comunidade — e, junto com ela, uma responsabilidade considerável pelos próprios atos criativos.”
❤️🔥 Criar é uma forma de afeto, e se relacionar é uma forma de criatividade
Não dá pra resolver nenhum dos problemas apontados de forma individual — i mean, esse é todo o ponto do texto. Só podemos trabalhar contra essa solidão buscando outras pessoas. E aqui vou ser um pouco radical: eu não acho que isso pode ser feito através da internet.
Pelo menos não de forma exclusiva. A internet pode criar muitas pontes entre pessoas que nunca se conheceriam na vida offline, movimentar discussões e trocas. Mas sendo muito sincera: nenhuma relação que já criei online, por mais inspiradora que fosse, ganha de um dia pintando com as minhas amigas. Ou de uma tarde visitando uma feira de arte independente e conversando com os criadores sobre o trabalho deles. Ou um barzinho com meu melhor amigo, que não é designer nem trabalha de forma alguma com criatividade (na verdade, ele trabalha num presídio), mas que escuta sobre os meus projetos e oferece visões diferentes.

Eu não seria a pessoa criativa que eu sou se a minha mãe não fosse artista, se ela não tivesse colocado pincel e tinta nas minhas mãos desde sempre. Eu não teria publicado o Glifo sem o apoio das pessoas que mais amo, ou sem o apoio de quem eu conheci pelo caminho e foi solidário comigo. E eu me esforço todos os dias pra retribuir tudo isso.
Quando penso nos meus momentos criativos mais felizes eu não estou sozinha, e é por isso que eu sou totalmente contra a figura do gênio solitário, o empreendedor de si mesmo ou qualquer outro similar.
Então essa edição é um convite: mesmo que você não tenha outros criativos próximos de você, chame um amigo para fazer arte. Vá a um evento e se apresente. Marque um café ou um jantar com alguém que você conheceu online e nunca pensou em ver pessoalmente. Sei lá! Mas vamos rejeitar essa noção imperativa de solidão. Eu acredito que se relacionar é uma forma de criatividade, e que o afeto, o cuidado, a amizade e o amor entre criativos são passos importantes para a nossa coletivização. Só quando saímos do isolamento podemos ver com clareza os problemas estruturais que afetam a nossa vida individual e coletiva. E quem sabe isso não abre espaço para mais mudanças :)
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ufa, obrigada por ler até aqui! eu estou super animada com o re-lançamento da makers para apoiadores, e espero poder contar com vocês :) fique a vontade para responder esse e-mail! e se você acha que alguém que você conhece gostaria dessa edição, compartilhe:
Hele, muito obrigada por essa edição! Amei do começo ao fim. É muito bom alguém da área criativa, especialmente design, falar sobre esses assuntos com um ponto de vista político. Me identifiquei muito. Já combinei com as minhas amigas de se encontrar para dar um role artístico!
já não sei o que é viver sem a makers, hele! obrigada por cada texto publicado! 💖💖