#44 a barganha da privacidade
você topa tudo por conveniência ou atenção? | tempo de leitura: 7 minutos
quando eu comecei a usar a internet, ainda criança, me lembro que meus pais eram muito preocupados com segurança. em algum momento essa cultura mudou: dá pra dizer que hoje é seguro fazer transações importantes online, de compras à declaração do IR. mas a virada foi além disso: em relação à nossa própria pessoa - nossa aparência, nossos gostos, nossos hábitos - chegamos a uma cultura de hiper-compartilhamento. enquanto a preocupação de alguns sobre o que acontece com os dados que fornecemos a empresas de tecnologia cresce, outras pessoas estão dispostas a abrir mão de qualquer privacidade por algo em troca. a edição de hoje é sobre essa barganha que parece não ter uma solução. vamos?
🕵️ Privacidade, espionagem e conveniência
A privacidade sempre foi uma preocupação e uma paranoia ao mesmo tempo. Não tenho um compromisso científico com essa afirmação, mas acho que todo mundo conhece pelo menos uma pessoa - de qualquer idade - que acha que o governo espiona todo mundo. Ou que o FBI faz isso, ou a Globo, ou sei lá. É anterior às redes sociais, mas piorou com elas: agora parece até que o celular escuta suas conversas, lê suas mensagens e te mostra anúncios relacionados. Outro dia minha mãe disse que pensou em um filtro de água e apareceu um anúncio pra ela.
Eu não teria como possivelmente verificar se isso é verdade ou não. É claro que a Meta jura que não tem escutas em cada smartphone. Eles dizem que não precisam: já sabem tanto sobre você pelos dados que você fornece voluntariamente que poderiam mesmo ler sua mente. Mas se isso é verdade não importa tanto, porque, se um dia eles anunciarem que sim, eles te espionam, quem vai sair do Instagram, do WhatsApp e do Facebook por isso?
Parece que tudo e todo mundo está em algum aplicativo. Não só as pessoas e as relações sociais: as oportunidades de emprego, as melhores ofertas pra sua próxima compra, sua lista de tarefas, a música que você escuta… E todos esses pedem algum dado: seu email, sua idade, gênero…
Em geral, o que nos leva a concordar com essa coleta é a conveniência e a sensação de que estamos ganhando algo ao compartilhar nossos dados. A
escreveu sobre isso na no final do ano passado, e parece que nossos padrões estão cada vez mais baixos: trocamos vários dados pessoais por uma.. selfie estilizada por um aplicativo de IA. Nem sei se dá pra chamar isso de conveniência pro usuário. Mas pras empresas que armazenam esses dados… aí sim é um acordo bem conveniente.🪞O perfil como estrutura e a autoexposição
E não é só sobre os dados que as redes exigem durante o cadastro, por exemplo. Essa discussão também precisa envolver os dados que fornecemos voluntariamente por causa de uma série de regras não escritas da internet, uma espécie de etiqueta.
A Jia Tolentino fala sobre isso em Falso Espelho, no ensaio “O eu na internet”. É um dos meus ensaios preferidos, e vale a pena ler completo.
“A internet é um meio em que o incentivo à performance é inerente. No mundo real, você pode simplesmente andar por aí vivendo a vida enquanto as outras pessoas olham para você. Mas, na internet, você não pode só andar por aí e ser visível; para que os outros o vejam, você precisa agir, precisa se comunicar caso deseje manter uma presença virtual. E uma vez que as plataformas mais relevantes são construídas em torno de perfis pessoais, pode parecer — primeiro em nível mecânico, depois como um instinto codificado — que o principal objetivo dessa comunicação é fazer com que você pareça interessante. É por isso que todo mundo tenta parecer tão lindo e viajado no Instagram; é por isso que todo mundo se comporta de forma tão orgulhosa e triunfante no Facebook; é por isso que, no Twitter, fazer uma declaração política justa, para muitas pessoas, tornou-se um bem político em si mesmo.”
É nesse ecossistema em que estamos quase involuntariamente inseridos. Você pode até dizer que, se você não quer estar online, é só apagar suas redes. Na verdade, todo mundo sabe que abrir mão da presença online pode significar abrir mão de uma parte da sua vida social e até da vida profissional, então está longe de ser uma questão fácil de resolver. Eu já falei um pouco sobre isso na edição #38, sobre vício em redes sociais.
O fato de as redes sociais serem centradas em perfis é uma responsabilidade do design (não exclusiva, mas enfim). Essas estruturas são criadas por alguém, por equipes, e escolhas são feitas o tempo todo. Hoje a forma como a maioria dos sites e aplicativos é construído nos incentiva a compartilhar cada vez mais. Mesmo que não seja obrigatório, eles te incentivam a compartilhar os seus pronomes, sua idade e fazer upload de uma foto do seu rosto - e nenhum desses formulários de cadastro surge do nada.
Tudo isso nos leva a compartilhar experiências pessoais, histórias familiares, selfies, nossa localização, o nome da empresa onde trabalhamos, nossos maiores desejos, medos - tudo. Cada vez mais pessoas viralizam e parece que elas mudam de vida, a ponto de essa superexposição ser um desejo e um sonho de muitas pessoas. Sobre isso, o podcast da
tem um episódio muito interessante sobre o “viralismo”; os hosts, André Alves e Lucas Liedke, são psicanalistas e pesquisadores, e trazem uma visão mais psicológica do fenômeno.Nessa corrida pra viralizar, onde fica a preocupação com a nossa privacidade? Será que essas discussões não deviam caminhar juntas?
🚩 Isso é um problema?
Por que esse hiper-compartilhamento pode ser um problema? Uma preocupação plausível hoje é o avanço das inteligências artificiais generativas e a falta de transparência sobre os bancos de dados que as alimentam. Qual o pior que pode acontecer se suas selfies acabarem em um banco generativo de avatares? Eu não sei. Não saber não é assustador o suficiente? Algo me dá a impressão de que é o tipo de coisa que vai dar dor de cabeça daqui alguns anos, e as pessoas vão correr pra tentar apagar certos dados sensíveis de seus perfis, mas vai ser meio tarde porque eles já vão estar pulverizados. Ou vai rolar aquele clássico: você quer apagar tal perfil mas perdeu o acesso e agora vai ter que mandar um email implorando pra alguém da empresa remover pra você.
Mas existem problemas mais realistas e mais imediatos: quanto mais dos nossos dados são públicos, mais sujeitos nós estamos a crimes como falsidade ideológica, extorsão, chantagens e até a criação de deepfakes extremamente violentos. São coisas que já estão acontecendo e nesses casos a lei já atua (ou tenta atuar) sobre eles. Mas quem quer passar por algo assim e depois resolver na justiça?
Por alguns minutos dá vontade de excluir todas as fotos da internet, trancar todos os perfis e nunca mais pensar nisso. Mas como? A área criativa é uma das que mais cobra a presença digital de profissionais. “Quem não é visto não é lembrado”, “pessoas se conectam com pessoas”, etc. E essa cultura de compartilhar tudo (até o que ninguém perguntou) dificilmente vai mudar se a estrutura da internet permanecer a mesma, ou seja: centrada em perfis e tendo o “engajamento” como o grande prêmio do jogo.
💣 Táticas de guerra
A zine “Can tech rewrite its wrongs?” da backslash é um dos materiais mais interessantes que temos sobre a relação humano-tecnologia atualmente. No capítulo sobre privacidade eles mencionam alguns produtos que já estão no mercado e que prometem proteger nossa privacidade (desde que você pague, é claro). A lista começa com ferramentas conhecidas, como uma conexão VPN. Mas chega em produtos mais curiosos, como
Roupas anti-vigilância estampadas com padrões visuais que confundem sistemas de segurança acionando Leitores Automáticos de Placas de Carros e injetando dados inúteis.
Óculos escuros projetados para enganar sistemas de reconhecimento facial.
Mochilas que bloqueiam qualquer sinal wireless externos para proteger seus dispositivos eletrônicos de qualquer invasão.
E o serviço DeleteMe, que promete remover toda sua informação pessoal da internet. Eu acho que eu até pagaria por isso se eu tivesse 129 dólares sobrando, sei lá.
O que você acha desses produtos? Parecem úteis num futuro próximo ou só paranoia? Se quiser, deixe um comentário:
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Esse serviço DeleteMe eu também pagaria