#36 "logomarca" e o prazer em corrigir
ou: a maior fake news etimológica do design | tempo de leitura: 5 minutos
um pouco de background. essa edição é sobre design & designers, mas também é sobre linguística e comportamento. eu sou formada em jornalismo, leio e escrevo bastante, sempre fui o tipo de pessoa que vai bem em provas, blablabla, eu literalmente tenho uma gramática em casa. e eu absolutamente não corrijo o português de ninguém de forma não-solicitada, exceto por essa edição: eu quero desfazer uma das maiores injustiças do século. vamos?
🔤 logomarca existe?
Existe uma única frase no mundo que me dá vontade de corrigir a pessoa que a diz em voz alta (e mesmo com vontade, eu ainda não fiz - essa é a primeira vez). A frase é
“logomarca não existe”
Porque “logomarca” não está errado. Falar que logomarca está errado é que está errado. Você pode já ter ouvido ou lido a seguinte ladainha:
“Logomarca não existe, porque logo vem do grego e quer dizer “significado”, e marca vem do alemão e quer dizer “significado”, e significado do significado não faz sentido e portanto a palavra não existe!”
Esse papo é problemático por muitos motivos. O mais óbvio é o tom arrogante: 90% das vezes, quem explica que logomarca não existe está tentando te humilhar pelo menos um pouco, mostrar como você é burro e devia se envergonhar pela sua burrice. Mas piora: o argumento está linguisticamente errado. Se você vai crescer pra cima de alguém com regras de português, por favor, pelo menos esteja certo.
“Logos” é traduzido do grego para significado? Não. Eu também não sou linguista, mas uma pesquisa bem básica na Wikipédia esclarece isso:
Lógos (UK: /ˈloʊɡɒs, ˈlɒɡɒs/, US: /ˈloʊɡoʊs/; Grego antigo: λόγος, translit. lógos; de λέγω, légō, lit. 'Eu digo') sintetiza vários significados que, em português, estão separados, mas unidos em grego. Vem do verbo légō (no infinitivo: légein) que significa:
Aquilo que é dito: palavra, frase, discurso, história, debate, expressão;
Aquilo que é pensado: razão, consideração, computação, cálculo, escolha, enumeração;
Uma conta, explicação ou narrativa, justificação, valor atribuído a alguma coisa;
Assunto de discussão, motivo, causa, razão de alguma coisa;
(Cristianismo) A palavra ou sabedoria de Deus, identificada por meio de Jesus no Novo Testamento.
Note que nenhum desses significados é “significado” (!). E marca? De acordo com a pós-doc em Letras Carolina Vigna Prado:
Marca vem do alemão markэ. Markэ pronuncia-se “marka” e a grafia varia entre “marke” e “marka” por causa da ausência da letra э em nosso alfabeto. (…) O argumento contra o uso do termo “logomarca” baseia-se inteiramente na falsa ideia de que markэ é traduzida como “significado”. Entretanto, markэ significa marca (como em “marcar algo”), identificação de uma empresa ou produto, selo gráfico, formato de um território… Qualquer coisa menos “significado”.
⁉️ Por que isso importa?
Nenhum de nós precisaria estar lendo toda essa teoria etimológica em uma newsletter sobre design se a fake news de que “logomarca não existe” não fosse espalhada por aí com tanta prepotência. Eu estudo numa escola de Design bem conceituada e já vi dois professores corrigirem alunos (publicamente) sobre isso - usando o tal argumento errado do “significado do significado”. Se ficamos chateados quando não-designers fazem trabalhos de design, por que permitimos que designers ataquem de linguistas tão frequentemente?
Existem ainda algumas variações dessa desinformação, como a versão de Ana Luisa Escorel publicada nos anos 90 em seu livro "O Efeito Multiplicador do Design". No capítulo "Logomarca, por quê?" ela escreve:
Na verdade, logomarca é uma dessas criações tipicamente brasileiras que, assim como a compulsão para inventar nomes próprios, por exemplo, definiriam o brasileiro como um indivíduo imaginoso, e pouco afeito a convenções.
De onde ela tirou isso? Nunca saberemos. Eu quase não me sinto confortável em citar nominalmente uma pessoa falando uma coisa tão sem sentido, porque eu não sinto tanto prazer em corrigir.
Outra variação é dizer que a palavra logomarca “não é adotada em nenhuma outra parte do mundo, ao contrário de logo, marca ou logotipo”, e para esse argumento eu só daria play nesse vídeo do Temporal Cerebral que mostra que a palavra existe sim em outras línguas e países:
Mas não é uma lição de moral. É que me pergunto: por que permitimos esse tipo de comportamento? Mesmo que logomarca fosse uma palavra “incorreta” - se é que isso existe - ainda seria de muito mau gosto ficar interrompendo pessoas pra iluminá-las com um fato tão desinteressante. Se você já esteve do outro lado corrigindo alunos ou um funcionário novo na sua empresa, não precisa me contar, é só parar de fazer, colocar a mão na consciência.
Parando pra pensar, a gente usa a língua o tempo todo sem pensar quase nada na etimologia de cada palavra. De onde vem a palavra palavra? Saber provavelmente não mudaria muita coisa. O que me leva a acreditar que os grandes especialistas que sabem o total de um fato etimológico não se importam de verdade com as palavras; só se viciaram no prazer meio bizarro que sentem ao corrigir alguém.
Eu gostaria de exercer minha profissão em uma área que tivesse o mínimo possível desse tipo de comportamento - esse texto é a minha singela contribuição.
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ufa, obrigada por ler até aqui! eu nunca me senti confortável de levantar a mão e dizer aos meus professores e ex chefes “ei, você está errado, olha que ironia”, e acho que anos segurando esse fato culminaram nessa edição. fique a vontade para responder esse e-mail se quiser conversar, compartilhar algo ou até mesmo criticar algum ponto da newsletter. espero que esse possa sempre ser um espaço de troca.
até a próxima terça!
- hele
HABLOU MESMO adorei :)
Adorei a provocação, Helena. O quanto essa correção não se relaciona com uma vontade de distinção, hein?