#106 fotografias, mockups e o meu apreço pelo mundo real
mais vale um treco na mão do que duas ideias voando | tempo de leitura: 7 minutos
oie! seja bem-vinde a mais uma edição da makers :) eu sou hele carmona, jornalista, designer e artista multimídia. no finalzinho de setembro recebi o pacote de fotos que contratei pro meu portfólio no hele studio. no mesmo dia, abri o linkedin (eu sei, eu estou no erro) e vi uma pessoa ensinando a “criar uma foto de perfil profissional e que parece muiiitooo real” usando algumas ferramentas de IAgen. diante de uma dualidade — entre minha felicidade com fotos de verdade e pessoas criando fotos de si mesmas de mentira — nasceu a edição de hoje. vamos?
Podemos discutir por quanto tempo for, a conclusão sempre será a mesma — a realidade é imperfeita. Me refiro à realidade material mesmo: o dinheiro, o corpo, os espaços, as inviabilidades e as ausências. Talvez meu salário não seja ruim e eu não passe três horas por dia no transporte público, mas salários e transporte público ruins são parte da realidade material em que eu vivo, tornando-a imperfeita, ainda que minha vida, individualmente, esteja confortável. A vida material, refletindo (e sendo refletida por) todo tipo de estrutura sociocultural, é um constante lembrete de tudo o que está errado. Estamos presos no mundo sensível de Platão1, composto de objetos que são apenas simulacros imperfeitos e transitórios de ideias perfeitas.
Designer e criativos amam a ficção. Projetar, por si só, exige a ficção: precisamos imaginar um mundo diferente do que é, um mundo em que uma nova obra existe; isso tudo antes que ela exista, é claro. Sendo a realidade tão falha, e sendo eu alguém cujo trabalho e sobrevivência dependem da imaginação, é de se imaginar que eu prefira a ficção à realidade. Mas não é isso. Não, eu tenho um grande apreço pelo real. Eu preciso da realidade para amar a ficção. Eu preciso de tudo aquilo que não é para imaginar o que pode um dia ser.
O que me leva a um problema pequeno, mas concreto: pessoas representando a si mesmas com ferramentas generativas de inteligência artificial. Eu achava que era uma prática restrita ao umbral, digo, ao LinkedIn — mas também vi acontecer no Instagram e principalmente no TikTok. São pessoas “arrumando” fotografias de seus casamentos, viagens, e principalmente gerando retratos de si mesmas em roupas e ambientes chiques ou profissionais, de escritório. Tenho muitas perguntas: mesmo se as fotos do seu casamento não saíram como você gostaria, está tudo em pra você abrir mão das lembranças desse dia em troca de uma imagem artificial? Sobre as fotos profissionais, se você não tem essas roupas, se não está nesse ambiente, qual é o objetivo de se representar dessa forma? Que crenças sobre sucesso essa prática reforça? Dentre esses exemplos, a maioria de quem faz isso são pessoas jovens, talvez com menos acesso a recursos — mas quais são as consequências de mascarar essa falta?
Esse ano eu contratei a Sara Monteiro, que já tinha feito fotos dos meus trabalhos impressos, para fazer um ensaio profissional. Eu estava abrindo o hele studio e queria ter imagens que representassem o meu trabalho. Pra mim, as fotos que tiramos só tem valor (na função de representar o meu trabalho e minha identidade profissional) porque elas me mostram trabalhando. Eu realmente montei e costurei livros e zines enquanto ela fotografava, e depois esse material foi adicionado ao meu estoque de produtos como qualquer outro. Ela me fotografou no lugar em que trabalho todos os dias, usando as ferramentas e roupas que uso todos os dias.
Qualquer um pode argumentar que fotografias são tão passíveis de adulteração quanto uma imagem gerada artificialmente. Afinal, qualquer um pode alugar um espaço, roupas e objetos de luxo, “fabricar” uma realidade; é uma prática comum entre coachs na internet. Além disso, toda foto já é mediada por ângulo, luz, edição, enquadramento, etc. Mas eu consigo reclamar sobre várias coisas ao mesmo tempo. Também me incomodo com essa prática de fotografia de uma realidade inventada — a questão é que com IA isso está ainda mais acessível e, portanto, mais frequente. Pode levar a distorções de imagem seríssimas, se ver representado de maneira perfeita e saber que não é verdade. Ou pior: e se deixarmos de querer um ambiente de trabalho agradável, roupas que nos fazem sentir bem, etc — só porque não “precisamos” mais delas pra fotografar e mostrar na internet? Essa prática reforça uma padronização da imagem do que é sucesso ao invés de resistir a ela frente a sua inacessibilidade.
A discussão que estou propondo não é sobre fotografia, ensaios, sobre “se montar” — essas coisas não são problema. A questão é: se você tem o objetivo de representar a si mesmo, se quer encontrar pessoas alinhadas com as suas ideias, por que negar a realidade? Que expectativas de performance estamos colocando sobre nós mesmos?
Por mais que algumas pessoas sejam mais ligadas à própria aparência do que outras, há coisas materiais que escolhemos para nos representar: nosso corte de cabelo, as roupas que usamos, o que mantemos sobre nossa mesa de trabalho, os livros nas estantes, a arte nas paredes. Essa realidade material já existe. Pode haver uma dissonância, sim, entre como gostaríamos de ser e como somos — sempre há, voltamos ao mundo das ideias perfeito e o mundo sensível imperfeito. Mas algo há de ser verdadeiro, e eu quero amar o mundo e as pessoas pelo que elas são e por seus desejos de ser.
O mesmo que escrevo agora sobre retratos feitos por IA é como me sinto há muitos anos sobre mockups no design. Mockups são peças digitais que nos ajudam a visualizar um projeto em sua materialidade. Quando começamos a projetar um livro ou revista, por exemplo, pode ser bom fazer mockups digitais, mas nada deveria ofuscar o produto pronto; e se seu mockup é mais bonito do que o seu produto final, ou você tem ajustes a fazer no seu projeto ou você está se preocupando com as coisas erradas. Um mockup é só uma ideia; o produto material é a sua verdadeira responsabilidade. Ele não precisa ser perfeito, mas precisa ser satisfatório. Se seu trabalho exige uma dimensão física e só funciona no digital, então é preciso se dedicar a melhorar o aspecto material, e isso só se faz… bem, conhecendo a realidade material, os substratos, as tintas, os revestimentos, etc. E aí vem outra questão: tantos designers são desconectados do mundo material. Acostumados com tudo na tela, não sabem a diferença entre os papeis, não sabem que certas cores simplesmente não existem em materiais impressos. Mas esse tema daria uma outra edição.
Como afirmei no início, eu sou uma pessoa que ama a ficção. Posso passar semanas idealizando um novo impresso, mas ele só tem valor quando eu o materializo; não porque é físico em si, mas porque para chegar ao físico precisei fazer escolhas: de papel, de indústria, eu precisei testar acabamentos, calcular custos e no fim eu consegui: algo viável e que existe. Nunca é igual a primeira versão idealizada, a ideia. É imperfeito e mesmo assim é melhor porque existe. Um objeto material existe porque há mais de uma forma de fazer as coisas e assim, se a primeira não funciona, eu tento uma outra; e tento até materializar o objeto final, porque sua versão final imperfeita vale muito mais do que sua versão digital-imaginada que não existe, não pode ser tocada, não pode ser enviada pelos correios, não pode ser amassada. Eu preciso desse objeto, eu preciso amá-lo como é pra pensar em melhorá-lo também.
Eu nunca fui uma fã de fotografia, não é uma mídia que acompanho com frequência. Conheço poucos fotógrafos, e nunca me arrisquei muito em fotografar nada, nem como hobby. Mas essas reflexões me fazem apreciar cada vez mais o trabalho de fotógrafos, e me dá mais vontade de apoiá-los e contratá-los. Considero os gastos com fotografia como um gasto recorrente do hele studio porque quero que as pessoas conheçam o meu trabalho de uma forma que esteja alinhada ao meu jeito de ser, de ver o mundo e de criar. E nesse ponto recorro ao registro fotográfico, uma forma de representação que considero capaz de captar meu apreço pela realidade.
obrigada por ler até aqui. o que você acha sobre esse tema? muito espinhoso? fique a vontade para responder esse e-mail ou deixar um comentário me contando. se você gostou da edição, compartilhe com alguém que vai aproveitar essa leitura também :)
Se eu estiver errada sobre isso, foi mal — estou resgatando conhecimentos do ensino médio. Mas acho que deu pra entender.








E é muito triste como essa mockupização do design é reforçada pelos próprios cursos e essa nova ideia de um currículo de design holístico! Ainda estou na graduação e eu sinto nós sendo desincentivados a procurar entender sobre impressão e cores reais pq é “coisa do passado”. Que os “livros tão acabando” e “as gráficas estão fechando”. As aspas são coisas que eu realmente ouvi!
"reforça uma padronização da imagem do que é sucesso." concordo, essa frase traduziu um pouco o que eu nem sabia que precisava traduzir. sempre tenho uma sensação estranha quando vejo perfis com essas fotos “profissionais” feitas por IA, que começaram a fazer só pra se mostrarem “profissionais”... são sempre café chique fake, livro chique fake, cafeteria chique fake, escritório chique fake. interessante, afinal, o que é sucesso